No primeiro encontro do meu Clube de Literatura Erótica, conversamos sobre O presidente pornô, da mineira Bruna Kalil Othero. E um encontro sobre leituras, como descobri, pode ir sempre muito além de gostei e não gostei. Quando preparei alguns tópicos para a nossa conversa, achei que, pelo menos em alguma medida, os outros leitores compartilhariam as questões que o livro me trouxe. Mas, depois da conversa, saí com mais leituras possíveis e um tanto de reflexões e curiosidades sobre a escrita erótica.
Enquanto meditava sobre isso, me ocorreu a ideia de matar a curiosidade em relação ao processo de escrita do livro com a própria autora, que, afinal, é minha contemporânea (acho um absurdo ela ser de 1995). Confesso que uma ideia semelhante não tinha me ocorrido antes, porque, como autora, sei que a experiência de falar sobre algo que você escreveu é um pouco estranha, no mínimo. E, sem dúvidas, algumas das perguntas que eu queria fazer para a Bruna flertavam com o famoso “o que a autor quis dizer com…”, que é exatamente o tipo de pergunta que não se faz.
Entretanto, sem querer perder a chance de ouvir mais da Bruna, criei coragem e enviei quatro perguntas formuladas a partir da nossa conversa, que ela respondeu com a maior atenção do mundo.
1. Escolhi o seu livro como primeira leitura do clube porque conheço um pouco do seu trabalho com poesia erótica e sei que você é uma pesquisadora da Hilda Hilst (apesar de agora saber que não apenas do lado pornógrafo da Hilda). O título também é algo que sugere essa identificação, mas notei que, nas sinopses e materiais de divulgação, não é estabelecido um vínculo claro do livro com o gênero erótico. Isso foi uma escolha sua? Como você compreende seu livro na tradição de literatura erótica?
BKO: Essa pergunta cai em uma das discussões mais antigas e mais difíceis dessa área: o que é erótico e o que é pornográfico? No oceano de definições, entre Maingueneau, Bataille, Barthes, Lorde e muitos outros, a maioria diz que erótico é o alto, o implícito, o elegante; e pornográfico é o baixo, o explícito, o vulgar. Quem foge dessa dicotomia (e com quem eu tendo a concordar mais) é a Eliane Robert Moraes. Nessa corda bamba, eu (de novo: a minha opinião é só mais uma entre tantas outras, ser autora não me dá autoridade pra nada, o livro existe independente de mim — que bom!) não considero meu livro erótico, mas pornográfico. Foi meu objetivo inserir O presidente pornô mais na tradição satírica de Gregório de Matos, Hilda Hilst (dos anos 1990), Nelson Rodrigues; e menos na tradição sedutora de Anaïs Nin, Marguerite Duras, ou pra ficar só no Brasil, Hilda Hilst (de 1950 a 1989), Márcia Denser, Branca Maria de Paula. Não sei se consegui, nem sei se isso faz sentido pros leitores, mas é a minha visão também como leitora e pesquisadora.
2. Como leitora de literatura erótica, achei interessante o quanto O presidente pornô parece beber das referências clássicas. Me refiro especialmente ao uso do erotismo para “ridicularizar” o poder estabelecido. Era esse mesmo o seu intuito? (rs) Você achou difícil fazer esse trabalho de crítica ao poder a partir das práticas sexuais uma vez em que vivemos em um mundo onde há lutas e movimentos para dar visadas positivas às diversas práticas (o sexo gay, por exemplo)?
BKO: Pra mim, o sexo no meu romance é tudo menos sensual. No Plazil, quase não existe espaço pro tesão: um mundo no qual o poder corrompe até o desejo. O difícil foi escrever cenas de sexo que não fossem, de fato, sexo. O que me interessa é usar o sexo pra falar de outras coisas, como questões de gênero, raça, classe, e sobretudo a linguagem, que é a minha praia como escritora. Como as dinâmicas de poder em uma transa entram nisso? E como o sexo pode nos ajudar a pensar a sociedade e a estética fora das quatro paredes? Foram essas perguntas que eu me fazia constantemente no processo.
3. No grupo, comentamos muito sobre a cena, do início do livro, em que o presidenciável Bráulio tem relações com um rapaz da sua campanha. Foi eleita por nós como a cena mais excitante, mas também gerou muitos sentimentos conflitantes quando pensávamos a mesma cena com um certo personagem da política nacional que começa com a letra B. Como foi trabalhar com personagens da política brasileira? Houve conflito entre deixar eles muito devassos e transões ou ir pelo lado da impotência sexual e do péssimo desempenho sexual?
BKO: O Bráulio é uma colcha de retalhos de todos os nossos presidentes, e a maioria deles não tinha muito apelo sexual. Foi aí que a pesquisadora histórica saiu de cena e entrou a ficcionista, imaginando os grandes homens do poder de quatro. Foi uma experiência divertidíssima, engraçada, curativa mesmo. Me senti revigorada depois de cada sessão de escrita. Acho muito benéfico para a saúde mental da nação imaginar seus líderes dando o cu. Sobre a qualidade da performance dos políticos, ela varia no livro, principalmente a partir da mudança de perspectiva — Bráulio sempre acredita que ele está sendo uma máquina do sexo, mas quando lemos a visão da Puta Intelectual, ela entrega que ele não é tão bom quanto acredita. A graça do livro, acho, está também em contrastar as diversas histórias que surgem na boca de personagens diferentes, uma polifonia que eu amei fazer.
4. Quando estava lendo O presidente pornô senti muita vontade de voltar a ler Hilda Hilst. Assim, acabei lendo Contos d’escárnio. Acho que há um diálogo muito bacana entre as duas obras, especialmente como vocês escolhem brincar com as formas e mudar os registros ao longo da história. Sem querer estabelecer uma comparação direta entre as duas, houve uma diferença entre as obras que mobilizou uma grande dúvida. A Hilda parece não ter muito limite em termos de perversões, podemos encontrar sugestões de incesto e pedofilia em suas obras, por exemplo. Isso já não ocorre na sua obra. O que nos gerou a pergunta: você acha que é mais difícil para uma autora contemporânea abordar temas tabu? Alguma vez, no processo de criação do livro, você pensou na associação dessa obra com a Bruna antes de decidir até onde ir?
BKO: Fico feliz que O presidente tenha te levado a revisitar Hilda Hilst, muito legal saber disso. Acho que sempre foi difícil abordar temas tabus, e pra nós mulheres em uma sociedade patriarcal isso tem um peso a mais. No meu caso, sou uma escritora jovem, estreando no romance com um livro que tem “pornô” no título, o que já afasta de cara muitos leitores. Foi uma decisão consciente dos riscos, e não me arrependo disso. Durante a escrita, não me censurei em nada, ia até onde a imaginação deixava, e só não abordei temas como incesto ou pedofilia porque não senti que eles acrescentariam aos meus objetivos com essa obra específica. Incesto é uma ótima abordagem pra falar de famílias brasileiras, mas como não me interessa escrever sobre famílias, esse não é um dos meus assuntos. No mais, isso é o que penso agora — reservo o direito futuro de discordar comigo.
Se você ainda não leu O presidente pornô, espero que as respostas da Bruna tenham aumentado a sua vontade de ler. Por aqui, as respostas dela me deixaram ainda mais impressionada com o trabalho de construção desse livro.