POR SEANE MELO

Você é um tesão, não pensa besteira

Fonte: My Mad Fat Diary Pego na barra da camisa e me preparo para tirá-la de uma vez. Sempre tiro rápido, como se não quisesse dar uma chance para a insegurança aparecer. Será que ainda vai me achar bonita?, tento evitar a pergunta. Ele me interrompe antes que eu comece. Deixa eu tirar, eu adoro tirar […]

Fonte: My Mad Fat Diary

Pego na barra da camisa e me preparo para tirá-la de uma vez. Sempre tiro rápido, como se não quisesse dar uma chance para a insegurança aparecer. Será que ainda vai me achar bonita?, tento evitar a pergunta. Ele me interrompe antes que eu comece. Deixa eu tirar, eu adoro tirar a sua roupa. Respondo com um beijo demorado e levanto os braços. Ele vai subindo a camisa devagar, comemorando cada pedaço de pele revelado com beijos e cócegas causadas pela barba. Quando termina, sentado na cama, me inspeciona. Não diz nada por um tempo.

“Agora deixa eu ver se essa bunda tá durinha mesmo”.

Besta. Eu rio.

“Você é linda”, diz ao meu ouvido me abraçando.

“Eu sei”, respondo achando graça e dando um cheiro no seu pescoço.

Ele me dá um tapinha na bunda para me punir por acabar com o momento romântico, enquanto me pego sorrindo, aliviada. Me sinto bonita mesmo.

Nem sempre foi ou é assim. Em geral, me sinto muito como uma impostora, principalmente quando alguém dá a entender que sou segura de mim. Comecei a pensar isso outro dia quando tava no carro e, pela milésima vez, coloquei The Weekend pra tocar. Quase todas as músicas do cara falam de sexo, né? Até acho que The Weekend tem música de transa para todos os gostos e que, se pá, tem até uma pras pessoas que têm tara com balão. Mas, enfim, tava mergulhada no meu pensamento costumeiro de como eu e o cantor devíamos encaixar bem já que ele sempre descrevia coisas que eu gostava muito, quando começou a tocar uma música e fiquei hipnotizada ouvindo ele cantar que ela [a mulher da letra] nunca se sentiria tão bonita, nunca se sentiria tão linda, quanto quando ele comesse ela. Oh when I make it there.

Fiquei me perguntando por que alguém tinha achado importante colocar aquilo na música e me questionei se tinha a ver com a imagem que os caras faziam das mulheres, como inseguras ou coisa do tipo. Na real, talvez só tivessem botado aqueles versos pra causar um efeito, podia ser uma parada meio vazia mesmo. Só que, pra falar a verdade, pensar nessa transa que faz a gente se sentir bonita mexeu comigo.

Me veio logo aquele olhar na mente, sabe? Todo mundo deve ter tido uma experiência assim: de tirar a roupa e o olho do cara brilhar. Lembro de um que me marcou demais, porque não era só o olhar, parecia que tava escrito “puta que pariu” na cara dele, como se não desse pra acreditar que eu tinha, por escolha própria, decidido dar pra ele. A surpresa do sujeito era tão grande que na hora eu até fiquei em dúvida se tinha sido uma decisão boa mesmo. A transa, infelizmente, foi bem esquecível, mas, quando lembro dele, consigo ver de novo aquele olhar. O olhar de admiração é um ponto fraco do ser humano, vai por mim.

Então, eu entendia o que era isso de um cara que te come e que te faz sentir bonita. Sei lá, com o The Weekend pode ser tudo mais profundo. Acho que ele pode ter lombrado com uma transa que vai fundo no nosso bloqueio, uma foda que proporciona um vínculo, um contato íntimo, aquela coisa de sentir que existe no outro e descobrir uma beleza dentro da gente. Vai que foi isso que ele pensou, né? Mas fiquei pensando em como a gente, muitas vezes, deposita na transa toda uma esperança de recuperar a autoestima e me bateu a bad.

Minha vida sexual todinha passou pelos meus olhos. Ou a minha vida mesmo, antes do sexo. Lembro que, quando era virgem, não imaginava como poderia deixar de ser. Eu tinha namorado, ou seja, tinha a demanda, mas achava que ia ser complicado demais. O mais engraçado é que, pra mim, o grande quebra-cabeça era a hora de tirar a roupa. Tinha medo que ele descobrisse que eu não era bonita. Eu achava que roupa, sutiã e calcinha não tinham o objetivo de esconder o que poderia causar desejo, mas de esconder o que era feio, sabe? Os pneus, as celulites, as estrias e todo o combo imperfeição. Ainda assim, perdi a virgindade e poderia falar que tudo se resolveu, mas não foi bem assim. Aquele meu namorado me achar bonita não me falava nada da minha beleza. Achava que ele não via problema no meu corpo porque me amava e toda aquela história de amar o feio, ele parecer bonito e etc.

Quando o namoro acabou, achei que não rolaria transa por muito tempo porque encontrar alguém que ame a gente não é como encontrar promoção de meia nas lojas Americanas. E daí veio o cara com o olhar de admiração. Depois mais alguns. Confesso que não é sempre que fico encanada com esse lance de me achar bonita, mas tem uns dias em que é difícil aturar minha cara no espelho. Daí se chegava um cara, me olhava pelada e dizia “teu peito aumentou”, era uma batalha interna pra fingir que aquilo não significava que provavelmente eu tinha ganhado uns quilos e pra só ficar feliz com meus peitos maiores.

Mesmo assim, nessa época, nunca parava pra refletir sobre isso. Porque eu achava que encanar com meu corpo era uma besteira. Sei lá, tanta coisa pra encanar, né? Tinha coisas sérias para resolver, como a falta de coragem pra ler Graça Infinita, do Foster Wallace. Fora o trampo e as coisas da vida real adulta que começava a ter que enfrentar, tipo ligar pro atendimento da Net. Então, nunca aceitei ver algum problema na forma como eu lidava com a minha autoestima.

Até que conheci o Daniel. Um homão da porra como dizem hoje em dia. E, descobri depois, a gente tinha um monte de coisa em comum. Eu nunca fui boa com paquera e o Daniel não dava sinal nenhum. Então, respirei fundo e disse pra mim mesma que ia sentar e esperar por aquele homem. Esperei por três infinitos meses, até que uns amigos fizeram uma festinha e a gente saiu do zero a zero. Tava querendo fazer isso há muito tempo. Ele disse depois que me beijou. Foda. Por mim eu teria tirado a calcinha naquela varanda, naquele exato momento. A gente ficou na pegação a noite toda e, na hora em que todo mundo se despedia, fiquei esperando ele me chamar pra casa dele. Nada.

Ficamos nessa por mais alguns encontros até que ele fez o convite. Vou poupar os detalhes pra chegar logo na parte que interessa. Depois de muita esfregação e beijo e chupada, a gente tirou a roupa, ele colocou a camisinha e… broxou. Não pensa besteira não é você não sei o que tá acontecendo. Fingi que tudo bem e agi naturalmente com ele, conversamos a madrugada inteira. Tentamos mais vezes e nunca rolou, mas sempre nos divertíamos juntos. Eu tentava não pensar em explicações para aquilo até que, uma noite, passando pela praia de carro, dei de cara com ele sentado em um barzinho ao lado de uma mina que podia ser modelo. Aí doeu. E a minha conclusão brilhante foi a de que ele broxou porque me achava feia. Às vezes eu sou mesmo genial.

Foram meses sem sair com ninguém e mais um monte de tempo pra aceitar que me sentir bonita era uma questão importante pra mim. E não dava preu esperar que outros me ensinassem isso. Outro dia tava conversando com uma amiga e ela me contava sobre a época em estava solteira e conseguia transar toda semana com mais de um cara.

“Mas eu me sentia usada, sabe?”

“Vai se foder, Jéssica” — não consegui segurar — “Eu aceito essa merda de se sentir usado de qualquer pessoa menos de ti”

Ela riu.

“Tá, usada não, mas não tinha significado, entende?”

Respondi que não entendia. Não sei que significado as pessoas esperam em uma foda, sabe? Significado já é uma palavra errada, tem a ver com uma parte da linguagem que nem deveria estar no sexo, pra começo de conversa. Imagina que louco se termina a parada lá e o cara vira pra mim: “mas o que você entendeu dessa transa?”. Daqui a pouco criam uma transa-ensaio até. Fico imaginando o Godard transando e a mina comentando:

“Naquele momento em que eu pedi pra você enfiar com força e você começou a fazer movimentos circulares no meu clitóris com uma mão e pressionou o meu pescoço com a outra, acho que finalmente entendi o limite da linguagem. É o corpo, a morte, o real é inapreensível”.

Tudo bem, sei que não é disso que as pessoas falam quando se referem a uma transa sem significado. Mas aí é que tá. Qual significado esperam? Não disse para a minha amiga, mas a época em que ela estava solteira e transava sempre era a mesma em que ela tentava esconder o quanto estava com a autoestima baixa. E não era por causa das transas. Na verdade, parecia exatamente o contrário. A autoestima baixa era o motivo dela querer se afirmar como corpo desejável. E as transas eram “vazias”, porque ela não conseguia sair daquelas experiências com uma sensação permanente de que era bonita e objeto de tesão. O outro legitimava tudo. E ele precisava retornar pra reafirmar aquilo. Caramba, hoje eu tô bem profunda mesmo.

No meu caso, não sei quando consegui melhorar isso, mas sei que mudei. Evolui, mas existem uns sinais aqui e ali me dizendo que preciso passar pelo teste novamente. Ainda estremeço na hora de me despir. Não sei se é puro medo de uma rejeição ou se é porque sei que, despida, corpo exposto, o discurso encontra seu limite. Não existe “você tem que se amar”. “Abaixo à ditadura da beleza” passa longe. No segundo em que o fecho do sutiã se abre, sua relação com o seu corpo está escancarada. Tive que aprender a me sentir bem na minha carne para chegar até aqui.

“Tava com saudades”, ele diz baixinho no meio da penetração. Não sei se queria que eu ouvisse.

“Também tava”, deixo escapar entre gemidos. Sinto o impacto das duas palavras assim que termino de falar.

Ele me abraça apertado, quase com violência, como se pudéssemos resolver tudo sem precisar de palavras.


Chegou agora? Então espia esse link e dá uma conferida nos contos que vieram antes desse. Dá pra ler tudo fora de ordem, de trás pra frente e até de cabeça pra baixo, mas você pode curtir saber um pouco mais sobre as coisas que a Vanessa tem que aturar.

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