Dia 09
Separe 200g do levain que você fez nestes últimos dias (cerca de 1 xícara) e coloque numa tigela com 300 ml de água, 500 g de farinha e meia colher (sopa) de sal. Misture bem, primeiro com colher e depois com as mãos.
Neide Rigo.
O dia começou às 06h30. Ainda sonolenta, Elvira levantou antes do horário habitual para conseguir preparar seu primeiro pão de levain. Era preciso começar cedo para ter tempo de dobrar, deixar descansar e crescer, antes de colocar no forno. Se tudo desse certo, o pão estaria assado às 12h e ela conseguiria almoçar antes de cortar o cabelo, às 14h. O encontro com Beto tinha sido marcado para 16h. Avisou que poderia chegar com pedacinhos de cabelo grudados no pescoço, mas confessou que queria aproveitar a viagem ao Rio para cortar com a Gabi, a cabeleireira indicada por uma amiga.
Beto avisou à mãe que trabalharia de casa naquela quinta. Tinha pouca coisa pra resolver realmente e poderia compensar a falta no sábado, quando ficaria de plantão recebendo clientes interessados em casar na casa de festas que a família administrava. Tinham discutido o horário e o percurso de Elvira antes, se ofereceu para buscá-la na Tijuca depois do salão, inclusive, só pra garantir que não ia se perder ou atrasar demais. Ela tinha recusado, dizendo que não queria dar trabalho. Pensou que não seria trabalho, tinha carro, podia fazer isso tranquilamente, apesar do trânsito do Rio, nada demais, mas não queria insistir. Não parecia ser dessas garotas que esperam que você se esforce muito num primeiro encontro, quer dizer, às vezes nem parecia que estava tratando aquilo como um encontro. Tudo bem, ele iria levá-la numa padaria e por mais que o queijo quente da Slow Bakery fosse excelente, sabia que não ia acabar em sexo. Não era impossível, mas era difícil, refletiu, melhor baixar as expectativas. Pelo menos era alguém com quem estava curtindo trocar uma ideia, pensava enquanto se arrumava pra ir ao supermercado.
O fogão velho da Elis só conseguia deixar o forno na temperatura mais baixa. O pão que deveria estar pronto em 50min, demorou 1h30 no forno. Tirou uma foto, enviou pra Beto, postou no Instagram e saiu, torcendo pra Elis não aparecer e encontrar o pão que deixou ainda na forma, escondido dentro do forno. Almoçou no bandejão da reitoria o mais rápido que pode, avisou Gabi que ia atrasar uma hora, mas atrasou uma e meia, pois nunca tinha ido à Tijuca. Chegou lá e encontrou outra cliente na espera.
“Beto, atrasei muito pra chegar aqui. Não vou conseguir chegar a tempo. Podemos deixar pra 17h?”
“Claro, suave, tô em casa. Só me avisa quando estiver saindo daí”, ele respondeu e continuou tocando violão.
Atraso é praxe no Rio de Janeiro. Se ela chegasse em um horário que ainda desse pra pegar a Slow Bakery aberta, nem tudo estaria perdido. No dia anterior, Elvira tinha comentado que precisaria ir embora cedo, não queria voltar pra Niterói em um horário perigoso, mas, pelas últimas mensagens, parecia mais tranquila. Tanto faz, não adianta ficar pensando nisso, se tranquilizou. Até agora, parecia bom demais pra ser verdade, então Beto estava preparado pra merda. Ainda ia rolar. Não é no primeiro encontro depois de um relacionamento de quatro anos que você se dá bem, calculou, mas também não custava tentar.
Tudo poderia ter dado errado. O atraso por si só já era motivo pra deixar ele zangado, Elvira pensava. Mas ele parecia tranquilo e ela finalmente conseguiu chegar às 17h30, tudo de pé. Quando digitava no celular que tinha chegado à estação Botafogo e esperava na saída Voluntários da Próxima, descobriu uma ansiedade que estava ali desde cedo tentando passar despercebida. Beto parecia bom demais para ser verdade, tinha que ser feio. De fato, só tinha uma foto boa e as outras fotos destoavam dela, era preciso ver pessoalmente para checar qual delas mais se aproximava da imagem dele. Pelo menos parecia alto e ser alto já compensava algumas coisas.
“Sou a menina careca de suéter azul”, decidiu escrever na mensagem pra ver a sua reação. Beto sabia que tinha ido cortar o cabelo, mas ainda não sabia qual tinha sido o corte.
“Sou o rapaz moreno de lábios severos e olhar penetrante”, foi a resposta. Elvira olhou ao redor, mas não o encontrou.
O sotaque carioca a cutucou nas costas. Elvira? Sim, ela respondeu se virando. Não pode conter o sorriso. Se Beto tinha algum defeito, não era a aparência. Era lindo e nenhuma das fotos lhe fazia justiça no fim das contas, nem a melhor, onde parecia ser charmoso e alto. Não era alto, na verdade, tinham praticamente o mesmo tamanho. Ele usava uma camisa florida (a mesma que Elvira encontraria nas suas novas fotos no OkCupid depois de sumir), tinha uma boca pequena, nada de lábios severos (apesar de ele gostar de repetir isso), além de um peitoral bonito e pernas grossas. Sorriu um pouco mais antes de começar a segui-lo até a Slow Bakery, pensando que, se ele quisesse, já estava resolvido.
Beto não conseguiu dizer qual tinha sido a mudança no cabelo. Talvez estivesse mais curto, mas ainda se parecia muito com o cabelo das fotos do aplicativo. Aliás, no geral, não achou que era diferente das fotos, só não estava de maiô, vestia uma calça jeans de cintura alta e uma blusa transparente que deixava a sua barriga de fora, por baixo de um suéter fininho com estampas infantis. Não gostou das roupas, na verdade, odiou que tivesse tanta transparência e pele de fora. Ela tinha o corpo bonito, não precisava mostrar a barriga daquele jeito, avaliou. Por mais que tenha odiado a sua roupa, gostava do jeito que ela lhe sorria. Meses depois, tentaria resgatar aquele primeiro sorriso em contraste com o sol poente e os tons de laranja desaparecendo às costas de Elvira em uma canção. Começou a guiá-la até a padaria.
Falaram sem parar, ambos nervosos. Elvira falava da cabeleireira e dos pedacinhos de cabelo que não desgrudavam da nuca. Contou que a cabeleireira reclamou dos cabelos que entravam embaixo na unha e causavam dor. Beto riu da conversa sem sentido, mas fez algumas piadas. Mudaram de assunto.
“O pão ficou mais bonito do que eu esperava pelo que você vinha me falando, sabe? Acho que cê tava escondendo o jogo”, ele comentou.
“Olha, também ficou mais bonito do que eu esperava, sabe? Agora preciso provar pra dar o meu veredicto”
“Você não provou?”
“Não deu tempo! Mas já foi um avanço ter ficado bonito, eu acho pelo menos, sempre fico com vergonha das coisas que cozinho”
“Mas o que as pessoas que comem falam?”
“Ah, não tenho muita coragem de oferecer para as pessoas”, Elvira confessou.
Beto riu.
“Mas já melhorei muito, viu? Sempre ficava muito feio, agora não tá ficando tanto. Mesmo assim a Elis nunca aceita quando ofereço”, ela comentou antes que pudesse se conter.
“Quem é ela?”
“É a amiga que mora comigo”
“Ih, acho que a Elis não confia muito na sua comida, heim?”
Elvira riu pra si mesma. “É, acho que não. Eu faço um bolo inteiro e ela nunca come na-da”
“Tô sentindo uma mágoa aí”, Beto brincou.
“Ah, eu fico triste, sabe? Acho que a gente nunca faz bolo pensando que vai comer só”
“Entendo. Faz pouco tempo que um amigo se mudou pro apê pra dividir o aluguel comigo, também fico chateado com umas coisas…”
Antes que Elvira se sentisse mal por ter começado a falar da roomie, ou melhor, de como se sentia solitária no Rio de Janeiro, Beto começou a compartilhar seus problemas com Guilherme. Revezavam-se entre contar causos da convivência diária e trocar conselhos, com uma pausa rápida apenas pra pedir o café — escolheram o mesmo, feito com o grão da casa — e o sanduíche. Beto foi de queijo quente, Elvira, Croque da Fofa. Tiveram que dividir a maior mesa da padaria com duas outras garotas, era horário de pico, Beto explicou, mas isso não impediu que continuassem a conversa como se fossem velhos amigos conversando na varanda de casa. Elvira reparou em como Beto sentou perto. Muitos caras sentavam de frente no primeiro encontro, talvez uma forma pouco inteligente pra não passar uma imagem errada. Mas Beto sentou muito perto e falava baixo, só pra ela, sentia que a distância entre eles era de menos de um palmo, podiam se beijar a qualquer momento, pensou. Beto se mexeu na cadeira e puxou uma sacolinha de papel pardo para cima da mesa. Tinha carregado ela durante todo o caminho, mas, de alguma forma, tinha passado despercebida para Elvira.
“Trouxe o seu presente de aniversário!”, explicou empurrando a sacolinha para a frente da garota. Ela deu um sorriso sem graça. Estava gostando tanto dele até aquele momento, já lamentava internamente. Elvira tinha pânico de presentes em primeiro encontro, por mais que isso não fosse algo que acontecesse com tanta frequência, na verdade, acreditava que existia bons motivos para que não acontecesse. A pessoa presenteada poderia pensar que o outro estava se esforçando demais, desesperado por agradar, ou, no pior dos cenários, o presente também representaria uma tentativa de fazer com que a pessoa que o recebia se sentisse em débito com a outra. E mesmo que esses dois pensamentos não passassem pela cabeça de nenhum dos dois, ainda havia o risco gigantesco de que a pessoa simplesmente não gostasse do presente escolhido por alguém que conheceu há poucos dias.
Elvira respirou fundo, deu mais um sorriso nervoso e trouxe a sacola para mais perto de si. Tinha contado que seu aniversário seria naquele domingo, então, talvez não fosse um presente simplesmente forçado. É até atencioso ele ter prestado atenção nisso, tentou se acalmar. Quando puxou a sacolinha, percebeu que pesava mais do que tinha esperado. Dentro, tinha uma embalagem robusta e retangular. A princípio, achou que o papel listrado era só a embalagem do presente, mas, quando foi puxando para retirar da sacolinha, soltou um suspiro de alívio e alegria.
“Eu não acredito!”
“Ué, cê me disse que não tinha dinheiro pra comprar farinha importada então resolvi te dar! Essa foi a farinha que te falei, que tem mais glúten”
“Beto, foi muito incrível da sua parte, sabe? Nossa!, ela parou um pouco para pensar em outras formas de agradecer. Tô até com medo de usar essa farinha e o pão dar errado. Vou ter que usar depois de ter acertado pelo menos três pães, ou, se quiser, a gente pode combinar de fazer esse pão juntos”, convidou.
“Claro, a gente combina sim”.
Trinta minutos de date e já temos planos pro futuro, Elvira pensou enquanto sondava a expressão de Beto em busca de qualquer incômodo. O rapaz simplesmente sorria de volta, parecia empolgado. Depois que Beto sumisse, Elvira ainda esperaria três semanas para usar a farinha. Não usaria na primeira semana pela dor da mágoa. Na segunda, porque faria brioches e não veria sentido em usar uma farinha especial em uma massa doce tão simples. Usaria depois de ler três ou quatro receitas de focaccia. Focaccia parecia italiano o suficiente para combinar com a farinha Stagioni. Pela primeira vez jogaria uma receita inteira no lixo.
Este trecho faz parte do livro Oi, sumido que estou publicando aqui, no Medium, e no Wattpad enquanto escrevo. Oi, sumido conta a história da série de encontros românticos e transas memoráveis entre Elvira e Beto, que foram interrompidas pelo sumiço inesperado do rapaz no WhatsApp. O fim abrupto, no entanto, é o início de uma saga, para Elvira, de descoberta de palavras, sentimentos confusos e vulnerabilidades. Sem se contentar com o sofrimento silencioso do abandono digital, a jovem decide aceitar o papel de louca que lhe sobra na história.