POR SEANE MELO

Parte II: Isso não se faz, Beto

Não sei no que você tava pensando quando achou que seria razoável fazer isso, na real, não sei nem se existem argumentos que defendam que simplesmente parar de falar comigo era uma opção.

Dia 1

Não sei no que você tava pensando quando achou que seria razoável fazer isso, na real, não sei nem se existem argumentos que defendam que simplesmente parar de falar comigo era uma opção. Aliás, uma opção pra quê? Pra acabar o que a gente ainda começava? Terminar um relacionamento que durou quatro encontros me parece irrisório demais pra você ter optado por uma atitude tão mais drástica. Pelo amor de deus, Beto!

Era preu ter todas as nossas mensagens até hoje. Apaguei do celular porque não queria cair na tentação de te mandar textos desaforados. Queria bancar a mina bem resolvida e desconstruidona sim. Nos dias em que bebesse, sabia que ia ser difícil resistir ao desejo de te chamar de babaca e dizer que você era desprezível. Você foi muito desprezível, Beto, porque gostei de você de verdade, sabe? Não sei se de um jeito romântico. Quando nos conhecemos, me sentia frágil, sozinha e você me acolheu de um jeito louco, prometeu me apresentar a cidade, levar no Madero, fazer trilha na praia, você me mostrou as possibilidades.

Pouco antes de você sumir, alguém me disse que eu era uma presa perfeita pra um abusador. Falaram isso depois que disse que não culpava os caras pelos relacionamentos cagados que tive, que eu entendia que podia simplesmente não ter dado certo entre a gente. “Acho muito drástico dizer que um cara trata as minas feito lixo, pelo menos se o parâmetro de referência é só uma pessoa e se, em última análise, não existe uma correspondência imediata entre o que uma pessoa fala e como a outra se sente. Já me senti um lixo quando um cara perguntou se queria chupá-lo, porque, naquele momento, pareceu que era só praquilo que eu servia. Também me senti um lixo quando um cara disse que eu era perfeita e não quis me acompanhar até o metrô. Enfim, às vezes só preciso me olhar no espelho pra me sentir um lixo, por isso não gosto de colocar na conta de ninguém. Longe de mim defender os homens, na real, tudo é relativizável, exceto as coisas que não são, né?”. Essa era a opinião que exprimia na mesa de bar quando disseram que eu era um alvo perfeito prum abusador. Fiquei impactada com a constatação, mas achei apropriada. Passei os homens com quem saí em revista e pensei que, apesar de ser tão ingênua, tinha tido sorte de não encontrar homens que me ferissem. Não pensei em você, Beto, você tava fora de suspeita. Só liguei essa conversa com a nossa história quando tudo aconteceu, quer dizer, quando deixou de acontecer qualquer coisa.

Tô escrevendo tudo isso porque não admito que alguém ache o que você fez normal. “Todo mundo faz isso hoje, né?”, uma amiga me disse uma vez e a outra acenou concordando. Volta e meia me sinto, também, tentada a concordar. Mas não é normal, só é muito difícil de explicar.

Daniel veio puxar assunto comigo logo depois que você sumiu. Fiquei um pouco envergonhada, mas contei de você. Falei que um cara do Rio tinha conseguido me ferir de um jeito que nenhum outro cara tinha ferido. Contei que achava que sabia lidar com canalhas sem me queimar, mas que você tinha me surpreendido. Daniel ficou curioso. “O que ele fez?”, perguntou. “Ele sumiu”, respondi. Houve uma pausa. Imaginei Daniel, do outro lado da tela, pensando: “bom, isso aí eu também meio que fiz”. “Ele sumiu do nada, sabe? Tava tudo ótimo e ele sumiu”, me senti obrigada a acrescentar. Mas não adiantou. Não adianta. Desde que você sumiu, me sinto essa pessoa solitária, beirando a loucura, querendo provar por a-mais-bê que não foi igual a nada que vivi. Quando Daniel ler essas cartas e essa história (se algum dia ler), vai sumir de vez igual a você, mas não vou deixar de falar que fui abandonada com medo de que outros caras queiram te imitar, porque eu preciso falar disso, Beto, disso que não se faz.

No primeiro dia, não senti nada, nem soube que era o primeiro dia. Tava numa semana cheia e já tínhamos falado sobre isso. Enviei mensagem me desculpando por ter ficado dois dias sem falar depois que voltei da sua casa. Pedi desculpas sem que você tivesse sequer reclamado, estava tão mergulhada nos textos das aulas que tinha certeza de que não estávamos conversando por minha causa. Todas as nossas primeiras mensagens sumiram — e tenho lá minhas suspeitas de que você me hackeou e apagou meu backup — , mas essas últimas linhas ainda estão muito nítidas na minha memória. Escrevi:

“Tô sumida mas tenho uma ótima desculpa pra isso”.

Quando enviei, imaginava que você perguntaria qual era a minha desculpa e eu contaria que estava adiantando todos os meus afazeres pra conseguir te ver mesmo naquela semana conturbada que ia acabar com o casamento da Elis. Você demorou um dia pra responder. Passou pela minha cabeça que aquilo podia ser estranho, mas se eu estava ocupada, porque você não poderia estar também, não é? Finalmente chegou uma resposta. Você se desculpava, dizia que às vezes ficava estranho e recluso, mas que estava curioso para saber qual era a minha desculpa. Respondi que você não precisava se justificar, afinal, era normal ficarmos algum tempo sem falar. Quanto à minha desculpa, argumentei que não precisava mais dar já que você havia me superado em ficar sem falar. Você replicou que não valia, que era injusto te falar aquilo e depois me recusar a matar tua curiosidade. Então, eu disse que ia falar só porque era muito fofa.

“Tô ocupada porque estou tentando adiantar minhas leituras pra conseguir te ver essa semana”, complementei com um emoji sorridente.

Você não respondeu no dia. Foi dormir, pensei realmente despreocupada, porque você não era do tipo que se retraía quando eu demonstrava algum afeto. Era uma quarta. No domingo anterior, você tinha pedido pra gente aproveitar essa euforia que estávamos sentindo. Não vamos nos reprimir, ok? Vamos só aproveitar essa vontade.

No primeiro dia, eu não soube de nada.


Este trecho faz parte do livro Oi, sumido que estou publicando aqui, no Medium, e no Wattpad enquanto escrevo. Oi, sumido conta a história da série de encontros românticos e transas memoráveis entre Elvira e Beto, que foram interrompidas pelo sumiço inesperado do rapaz no WhatsApp. O fim abrupto, no entanto, é o início de uma saga, para Elvira, de descoberta de palavras, sentimentos confusos e vulnerabilidades. Sem se contentar com o sofrimento silencioso do abandono digital, a jovem decide aceitar o papel de louca que lhe sobra na história.

Leia outros contos

Preencha o formulário abaixo e baixe gratuitamente "Como viver sozinha" e "O fim daquele medo bobo"