POR SEANE MELO

Para mulheres que tinham potencial

Maternidad, de Ángel Larroque Tem algo que fico tentando falar pras minhas amigas que tiveram filho e que nunca acho que falei completamente, do jeito certo ou com tanta veemência. Ao longo dos meus estudos, conheci muitas mulheres brilhantes, pessoas inteligentes como nunca imaginei. Os professores as respeitavam, os colegas de classe admiravam e/ou invejavam, e […]

Maternidad, de Ángel Larroque

Tem algo que fico tentando falar pras minhas amigas que tiveram filho e que nunca acho que falei completamente, do jeito certo ou com tanta veemência.

Ao longo dos meus estudos, conheci muitas mulheres brilhantes, pessoas inteligentes como nunca imaginei. Os professores as respeitavam, os colegas de classe admiravam e/ou invejavam, e nós todos tentávamos adivinhar que grandes trabalhos elas fariam no futuro e que cargos chegariam a ocupar. O tempo passou e muitas das mulheres brilhantes que conheci tiveram filhos. Um dia, uma delas me disse que não era mais a CDF que conheci, agora a vida era outra, era mãe. Outra, quando seu bebê tinha poucos meses, foi logo se adiantando e me dizendo que não ia “ficar parada”, era só o filho ter mais autonomia que voltava a estudar.

Sempre me perguntei porque o trabalho e a carreira apareciam nessas conversas que poderiam ser só sobre pezinhos e mãozinhas cheias de dobrinhas, mas achava que era algo que elas diziam mais para o próprio conforto, como para mostrar que estavam no controle daquilo ou tinham um bom plano para a vida.

“‘Tenham filhos, é incrível, vocês se sentirão mais mulheres e mais realizadas do que nunca’, mas tenham-nos em meio a uma sociedade desajustada, em que o trabalho assalariado é uma condição de sobrevivência social, embora não seja garantido para ninguém, sobretudo para as mulheres. […] A felicidade feminina não existe sem filhos, mas criá-los em condições decentes será quase impossível. É preciso, de qualquer jeito, que a mulher se sinta fracassada”. (Despentes. Teoria King Kong)

Um dia, uma outra pessoa, que conhecia uma das minhas amigas, comentou comigo: “a Fulana é muito boa, era cheia de potencial, tinha tudo pra ir longe, mas acho que agora ela só quer saber de ser mãe mesmo, né?”. Comentou isso como um lamento sincero, como se minha amiga não estivesse cuidando de um bebê de três meses, mas como se tivesse decidido desperdiçar toda a sua inteligência e o investimento de sua família em seus estudos por puro luxo.

“O que nossas mães ficaram fazendo que não tiveram riqueza nenhuma pra nos deixar? Retocando a maquiagem?Olhando vitrines? Tomando sol em Monte Carlo? […] A mãe de Mary — se é que era ela no retrato — pode ter sido preguiçosa e esbanjadora em seu tempo livre (ela teve treze filhos com um ministro da Igreja), mas, se isso for verdade, sua vida feliz e esbanjadora deixou pouquíssimos traços de deleite em seu rosto” (Virginia Woolf. Um teto todo seu).

O comentário me chateia até agora, porque foi a partir dele que as desculpas daquelas mulheres que eu conhecia fizeram sentido. Bom, era óbvio o tempo todo, mas eu estava sendo ingênua. Se todo mundo visitasse uma mãe e uma criança de três, quatro, seis meses, entenderia o quanto aquele mini ser vivo é dependente e vulnerável e o quanto é supérfluo apressar as coisas, eu pensava. E pensava isso com ainda mais veemência por saber o que é trabalhar muito e ganhar mal, ganhar menos até que os homens que não “tinham potencial”. Ou, no caso da vida acadêmica, por saber dos longos anos de investimento e sacrifícios em situações bem distantes das ideais. Uma mãe cuidar do seu filho nunca me pareceu um luxo, pelo contrário, sempre me pareceu lógico e mais que razoável diante dos custos emocionais e financeiros de terceirizar essa tarefa.

“Se ao menos a senhora Seton, sua mãe e sua avó tivessem aprendido a grande arte de ganhar dinheiro e tivessem destinado o seu dinheiro, como fizeram os pais e avôs delas, a criar bolsas de pesquisas ou palestras e prêmios e bolsas de estudos específicas para o uso de seu próprio sexo, nós poderíamos […] estar explorando ou escrevendo. Mas, se a senhora Seton e seus pares tivessem ido trabalhar aos quinze anos, não haveria — esse era o centro da discussão — nenhuma Mary” (Virginia Woolf. Um teto todo seu).

Entretanto, por mais que seja sensato, por mais que possamos argumentar por A + B que se dedicar à maternidade muitas vezes é a melhor opção, não deixa de ser dolorido ser essa mulher que desperdiçou seu potencial. Desde que a minha irmã deu seu primeiro beijo, com treze anos de idade, eu e ela descobrimos o perigo que é ter um útero. Aos 17 anos, quando entrei na faculdade e comecei meu primeiro namoro, a preocupação dos meus pais era com a possibilidade de eu engravidar, mas a gente chamava isso de “medo de atrapalhar nos estudos”. Por volta dos 20, uma ginecologista me pediu uma ultrassom intravaginal e eu surtei. Se você digitar “ultrassom intravaginal” no google vai ver que tem uma sugestão seguida de “gravidez”. Talvez tenha sido o dia em que mais magoei esse meu parceiro, mas pra ele era uma questão de assumir ou não um filho, pra mim era uma questão de definição, ser mãe, deixar de ser uma boa aluna, deixar de ser alguém com potencial. Depois que o susto passou, pensei que tinha reagido com tanto temor porque era nova e ainda não tinha terminado a faculdade, mas — vendo amigas que tiveram filhos depois de terem concluído graduações, especializações, mestrados e por aí vai, a maternidade ainda me parece ser uma experiência de (re)definição.

O que não contam sobre o potencial é que, no caso feminino, ele sempre foi uma falácia; afinal, todos os melhores alunos das escolas e cursos por onde passei eram mulheres e esse fato parece simplesmente incompatível com a quantidade de mulheres em cargos de destaque que encontrei até agora. O que não contam pras minhas amigas e pra nós, mulheres, é que não deveríamos nos preocupar em estar erradas nas nossas escolhas de ocupar ou não o espaço doméstico, pois ser mulher ainda significa não ter escolha.

Em 1928, Virginia Woolf tentava analisar porque havia tão poucas mulheres na literatura. Algumas citações desse texto foram transcritas acima, acrescento mais duas abaixo.

“Fazer fortuna e criar treze filhos — ser humano algum seria capaz disso. […] Se a senhora Seton, disse eu, estivesse ganhando dinheiro, que tipo de lembranças de brincadeiras e brigas você teria? O que você saberia sobre a Escócia e seu ar puro, seus bolos e todo o resto? Mas é inútil se perguntar essas coisas porque, para começar, você nem existiria. Além disso, é igualmente inútil se perguntar o que teria acontecido se a senhora Seton, sua mãe e sua avó tivesse acumulado grande riqueza e a houvessem depositado nas fundações de uma universidade e uma biblioteca, porque, em primeiro lugar, ganhar dinheiro era impossível para elas, e, em segundo, se isso tivesse sido possível, a lei lhes negaria o direito de possuir o dinheiro ganho. Foi só nos últimos quarenta e oito anos que a senhora Seton poderia ter tido um centavo seu”.

“Mas, de minha parte, concordo com o falecido bispo, se é que era um: é impensável que qualquer mulher nos dias de Shakespeare tivesse tido o dom de Shakeaspeare. Porque um gênio como o de Shakespeare não surgia entre pessoas trabalhadoras, sem educação formal, servis. Não nascia na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não surge hoje entre as classes trabalhadoras. Como, então, poderia surgir entre as mulheres cujo trabalho começava, de acordo com o professor Trevelyan, pouco antes de deixarem o berço?”

Pode parecer exagerado citar esse texto quando temos acesso a educação básica e superior, podemos trabalhar e ganhar nosso dinheiro. Em parte por isso, acredito, não é tão simples perceber que ainda não temos escolhas. Mas que tipo de independência pode ter uma mulher se ainda é tão necessário discutir e pensar novas condições para a realização do trabalho materno? Que tipo de independência (e a que custo) teremos se deixarmos que a maternidade continue no âmbito privado, na intimidade do lar, como uma questão individual?

“Surpreendente e tristemente revelador: a revolução feminista da década de 1970 não provocou nenhuma reorganização no que diz respeito aos cuidados com as crianças. Muito menos à gestão do espaço doméstico. Trabalho voluntário, logo, feminino. Não saímos da condição do trabalho artesanal. Seja política ou economicamente, não ocupamos o espaço público, não nos apropriamos dele” (Despentes. Teoria King Kong).

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