POR SEANE MELO

Não é assim que acaba uma grande paixão

Uma resenha de Manual da demissão, de Julia Wähmann. Quando soube da existência de Manual da demissão (Record, 2018), imediatamente incluí na minha lista de livros para ler. Menos pelo que podia tentar adivinhar pelo título, mais por se tratar de um romance de Julia Wähmann, autora do zine André quer transar, publicado pela Pipoca Press […]

Uma resenha de Manual da demissão, de Julia Wähmann.

Quando soube da existência de Manual da demissão (Record, 2018), imediatamente incluí na minha lista de livros para ler. Menos pelo que podia tentar adivinhar pelo título, mais por se tratar de um romance de Julia Wähmann, autora do zine André quer transar, publicado pela Pipoca Press em 2015 e pelo qual eu havia caído de amores em 2017.

Se podia dizer algo sobre Julia só pela leitura do zine era que tinha um humor certeiro e sabia escolher ótimos títulos. Da mesma forma, Manual da demissão não me inclinava a mudar essas convicções, já que a própria ideia de um manual — no sentido de um livro de orientações para a execução ou o aperfeiçoamento de determinada tarefa — acompanhado de um termo tão carregado de sentidos negativos já me fazia dar risos nervosos.

Se, por um lado, não duvidava que a autora conseguisse me fazer rir de uma demissão, por outro, me questionava se a minha apreciação do livro não seria comprometida, de alguma forma, por uma dificuldade — que eu antecipava — de me identificar com as dores da situação que dá título à obra. E, de fato, o distanciamento que sentia entre a minha realidade e à da desafortunada J., cujo patrão ficou maluco quase na mesma época em que o bunda do seu namorado acabou o namoro, teve impacto direto na minha leitura.

Em tempos como esse — em que pautas como feminismo interseccional ganham espaço na nossa forma de organizar o mundo — acredito que não seja mais possível resenhar um livro com a sugestão de que seja uma obra que se estende para além de seus limites e que consegue captar o “verdadeiro espírito” do nosso tempo. Tampouco acho que Julia Wähmann sequer flerta com essa ambição. Mas recorro a esse preâmbulo para dizer que Manual da demissão também funciona como um retrato das crises e traumas que marcam os últimos anos no Brasil sem que, dizendo isso, nos esqueçamos que se trata de uma experiência de desemprego vivida por uma classe média que, pelo menos no livro, tem a possibilidade de migrar para Lisboa em busca de novas oportunidades.

Apesar de construir sua narrativa nesse lugar relativamente privilegiado, Julia consegue escapar às insinuações “classe média sofre”. Na verdade, o esforço de J. — a protagonista que narra em primeira pessoa sua sina de demissão e pé na bunda — é exatamente em atenuar todos os requintes de crueldade da demissão inesperada por meio de trocadilhos e piadas. Nos primeiros dias de libertação forçada do emprego, J., A. e B. matam os dias na praia, recuperando o bronze perdido na firma e alimentando um alcoolismo refinado à base de cervejas artesanais. “Nada como ser demitido com as pessoas certas”, os personagens tomariam como lema.

No entanto, enquanto lia e quanto mais acompanhava as tentativas de J. em ver pontos positivos e em evitar levar a sério a sensação de rejeição que experimentava de uma só vez no âmbito profissional e amoroso, mais o “lado bom” se tornava caricato e efêmero. A janela que se abre quando uma porta se fecha, como J. diz no início do livro, “é somente o melhor lugar de onde se arremessar”.

Uma demissão, assim como um pé na bunda, é um evento que legitima a vida na Terra — e, enquanto do segundo se diz que te faz andar pra frente, do primeiro diz-se que, onde uma porta se fecha, uma janela se abre, além de outros consolos, ditados populares e pesares evocados em tais provações. Em comum, ambos geram um sentimento inconteste de rejeição e compulsão, temporária ou não, por açúcar, ansiolítico ou drogas mais marginais, primeiras boias de salvação quando o golpe apenas dói e a janela é somente o melhor lugar de onde se arremessar (p. 13).

Além de uma coleção invejável de ditados populares nomeando cada um dos capítulos e de representações fiéis das burocracias pós-demissão — se você nunca teve problemas para sacar o FGTS, se sinta agraciado — o que mais me fisgou em Manual da demissão é o quanto ele nos faz pensar nas nossas relações com o trabalho. O duplo abandono, amoroso e financeiro, não parece ser um acaso. Ao longo do livro, ela serve como uma balança que pesa mais para o segundo lado. Quase nunca J. se permite pensar e falar em detalhes do relacionamento falido (e do ex-namorado bunda que não recebe nome), enquanto a rejeição do patrão maluco ocupa boa parte de seu ano. Nesse contexto, até mesmo músicas de pagode são ressignificadas.

Em breve, o corpo entenderia que poderia despertar mais tarde e inventar outra rotina, enquanto na cabeça aquela música tocasse em looping. “O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade, se estou na solidão pensando em você?” (p. 30–31).

Se engana quem pensa que, com isso, a autora insinua que o campo dos afetos perde espaço para um imperativo financeiro ou produtivo. Pelo contrário, J. nos faz perceber que nossa relação com o trabalho também é amorosa e que, talvez, seja a relação para a qual mais nos dediquemos em nossa rotina diária. A personagem descreve pouco do seu trabalho na firma azul, mas, em alguns trechos, é possível perceber que é uma separação dolorosa porque permeada de amor e expectativas. O que ela narra é a experiência de ser demitida do emprego dos sonhos (que, nem por isso, é romantizado).

Ao ser enxotada da zona de conforto da firma acarpetada que causa rinites e problemas na coluna, o cenário que se delineia pela sua frente está longe de um “se tu não quer, tem quem queira”. Crise econômica, crise política, impeachment, mudanças nas leis trabalhistas, freelas e coworkings passam a fazer parte da vida de J. Sem perder o humor, ela vai nos mostrando que não somos imunes às mudanças nas formas de trabalhar. Mesmo eu, que nunca cheguei perto do emprego dos sonhos — e, portanto, nunca experienciei uma demissão que não pudesse ser vista sobre o prisma de “eba, agora vou poder fazer meu doutorado em paz” — e que já quase naturalizei a ideia de que trabalhar em casa é uma boa opção, me peguei pensando sobre todos os impactos que a precarização do trabalho, às vezes disfarçada de nome gringo, tem em nossa vida emocional.

Sociólogos, comunicólogos e pesquisadores da mais diversas áreas continuam atentos às mudanças no mundo do trabalho e nos impactos que estas podem ter até no campo político. Pessoalmente, defendo a importância desses textos ainda que nem sempre fáceis ou prazerosos. A boa notícia é que Manual da demissão agora se somou a essas leituras e é uma delícia!

Quando uma porta se fecha, uma janela se abre, mas em alguns casos ela é um basculante estreito, pelo qual você não consegue passar. A sensação que tenho é de que fiquei entalada nesse meio do caminho onde já se consegue ver o mundo lá fora, mas algo te prende ao passado. Sonho constantemente com o patrão que ficou maluco.


Para ouvir o podcast que gravamos com Seane Melo, clique aqui!


Essa resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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