POR SEANE MELO

Levain do zero ao pão assado

Fonte: BakeClub Dia 04 Refaça bolinha e coloque em água limpa. Ou seja, repita o que fez ontem. Não importa se a bolinha se desmanchou, se boiou, se está estatelada no fundo. Não importa, recolha os restos mortais da bolinha, junte mais farinha e faça outra bolinha. Acho que todas as dúvidas estão respondidas nos […]

Fonte: BakeClub

Dia 04

Refaça bolinha e coloque em água limpa. Ou seja, repita o que fez ontem. Não importa se a bolinha se desmanchou, se boiou, se está estatelada no fundo. Não importa, recolha os restos mortais da bolinha, junte mais farinha e faça outra bolinha. Acho que todas as dúvidas estão respondidas nos posts anteriores. Outras pessoas também estão ajudando a responder. Obrigada! Amanhã faremos a mesma coisa.
Neide Rigo.

Beto pensou em algo engraçado pra mandar pra menina com foto de maiô. Não tinha pensado muito antes de decidir que queria interagir, só tinha achado engraçada aquela coleção de fotos de maiô e uma caricatura perdida no meio de tanta pele à mostra. Era quase um caso típico de foto de mulher gostosa com frase reflexiva. Ela tinha mais fotos de maiô que qualquer outra coisa, mas tinha aquela caricatura ali, pra dizer que também não era assim tão vaidosa, ou sei lá, foda-se, não ia filosofar sobre isso. Pensou que deveria falar algo sobre o perfil, mas o OkCupid era uma bosta, as pessoas simplesmente escreviam teses para falar de interesses, como se ele realmente tivesse interesse de saber todas essas coisas de uma mina que podia simplesmente ignorá-lo. Tava atrasado pro trabalho, tinha visto a primeira foto de maiô e dado like já dentro do carro, imediatamente veio o match, agora precisava de uma frase engraçada.

O celular vibrou indicando que havia chegado uma mensagem nova do app de paquera. Desde que o OkCupid tinha voltado a funcionar no seu celular, aquelas notificações não paravam de chegar. Há alguns dias, Elvira tinha até recebido um e-mail da empresa dizendo que mais de 200 caras tinham demonstrado interesse naquele perfil (“We just detected that you’re now among the most attractive people on OkCupid”). Tinha rido, postado um print no Twitter, mas, na verdade, só tinha tido vontade de conversar com um dos 200 até aquele momento. E o interesse não tinha nada a ver com a capacidade de manterem uma conversa interessante de verdade, a foto do peitoral sarado e a informação de que se tratava de um jogador de futebol profissional (leia-se bunda sarada) é que tinham chamado a sua atenção. Já que não conseguia nem fingir interesse em conhecer alguém para um envolvimento sério depois daquela última briga com Daniel (ainda que tentasse se convencer do contrário), o jogador de futebol, nunca se referia a ele pelo nome, caía como uma luva. Ou cairia, se conseguisse estar livre em algum momento. Já se falavam há duas semanas, mas o rapaz havia sinalizado que só poderia encontrá-la a partir do dia 18 de maio, e bem que poderiam ter um pouco mais de assunto, pensava, pois não tinha muito o que acrescentar às conversas sobre o que pretendiam fazer quando se encontrassem. Elvira odiava se sentir pouco criativa, mas era complicado ir muito além de “quero muito te chupar” por mais que o tesão fosse sincero. Quando ainda faltavam 10 dias pra data, decidiu evitar essas conversas com medo de em algum momento se pegar inventando “então eu vou te chupar, daí vou molhar meu cabelo e bater no teu pau e depois enrolar e…”. Na verdade, não era difícil saber onde aquilo ia parar: não ia dar em nada. Dez dias sem assunto antes do primeiro encontro era uma morte anunciada. Paciência!

Abriu o aplicativo só pra fazer o celular parar de piscar avisando sobre a notificação, mas logo percebeu que havia algo de diferente. No OkCupid, todos os caras tinham permissão para mandar mensagem, não dependia de uma combinação, por isso, Elvira se assustou com a informação de que havia um match. Só podia ter curtido o perfil daquele tal de “betocasanova” antes de ter visto o jogador, não lembrava. Devo ter me interessado por algo do perfil dele, conjecturou antes de abriu o chat.

Nele, Beto dizia que estava impressionado com a foto de maiô, que era uma estratégia perfeita pra mostrar como ela ficava bem de maiô em uma pose que parecia indicar que a foto era um acidente. Elvira riu e entrou na brincadeira, admitiu ter sido descoberta. Enquanto esperava uma nova resposta, foi conferir o perfil novamente. As fotos não eram muito boas, parecia feio em três e apenas em uma parecia alto e charmoso. Não deve ter sido pelas fotos, concluiu e foi ler o perfil em busca de uma resposta melhor para o match. No entanto, Beto não tinha se dedicado para preencher o perfil, não dizia quase nada sobre si. Trocaram mais algumas mensagens até Beto perguntar o que fazia no tempo livre. Elvira respirou fundo sem nem ao menos perceber e girou o olhar pela cozinha minúscula do novo apartamento. Tinha acabado de se mudar, ainda não tinha muitos amigos e tinha passado os últimos dois meses enfiada em todos os livros que os professores sugeriram até então. A grana tava curta, as disciplinas do doutorado exigiam demais, a sensação era de que não sobrava tempo nem para dar uma volta na praia aos domingos. Tentou pensar em uma resposta engraçada, mas se sentia tão pouco divertida depois daquela pergunta que não conseguia pensar em nada que, pelo menos, não entregasse que era uma jovem idosa que nunca saía de casa. Procurou na memória todas as coisas que gostava de fazer e só duas coisas vieram à sua cabeça. Bom, nunca menti bem.

“Ah, não tenho feito muita coisa além de ler as coisas do doutorado e tentar fazer um fermento, sabe?”

Beto leu a mensagem ainda dentro do carro, continuava parado no estacionamento, e ficou alguns minutos sem se decidir se respondia. Elvira olhava a tela do celular na sua cozinha, esperando pela única resposta que conseguia imaginar: “fazer fermento?”. Mencionar o fermento tinha sido algo meio doido, mas não sabia mentir ou inventar algo mais divertido e, por mais que não parecesse exatamente convidativo, pelo menos dava a impressão de que era exótica ou prendada, não tinha muita certeza. Beto releu seu próprio perfil antes de responder. Até dizia que era interessado em gastronomia, mas nada tão específico, não acreditava na coincidência.

“Sério? Eu matei três massas madres!”, finalmente respondeu.

Elvira também foi pega de surpresa. Massa madre. Neide Rigo, a moça do blog cujo tutorial ela estava seguindo para preparar um fermento natural, nunca tinha usado essa expressão, pelo menos não até ali, mas, pela forma como ele respondeu, não teve dúvidas de que falavam da mesma coisa. Também tinha medo que o seu fermento morresse, quer dizer, tinha medo de que ele nem viesse a ser um fermento uma vez que ainda faltavam alguns dias para que terminasse o processo.

Confessou que estava tentando pela primeira vez. “Na real, nem sei se minha bolinha está se comportando como deveria”.

Bolinha? Beto franziu o cenho, a empolgação baixando. Será que ela sabia o que tava fazendo? Perguntou e, ao ouvir a resposta (“Ué, tô seguindo um tutorial da Neide Rigo e ela disse pra fazer bolinhas de trigo por sete dias”), teve a ideia de fotografar algumas páginas do Flour Water Salt Yeast que sempre levava pro trabalho para ler nas horas de tédio. Se ela quer fazer isso, pelo menos pode seguir o tutorial certo, não uma louca qualquer da internet com um blog de layout deplorável.

Elvira passou o número do WhatsApp para receber as fotos. Como um detalhe em cada uma delas, havia a mão levemente cabeluda de Beto formando uma garrinha para segurar a página, na mesma posição em que deve cortar cebolas, pensou achando engraçado e imaginando como seria encontrá-lo pessoalmente. Continuaram conversando, enquanto Elvira tentava dar uma lida rápida nas páginas que ele fotografara. O método era realmente diferente, mas não eram opostos e queria tentar o tutorial da Neide até o fim. Quem ele pensa que é pra dizer que não funciona?, achou a atitude um pouco irritante, mas, de fato, se sentia insegura com o resultado, principalmente, com a aproximação do momento de fazer o pão. A Na é uma cozinheira muito melhor que eu e vivia reclamando que os pães não davam certo no começo. E se eu matar o fermento na primeira tentativa de assar um pão e precisar refazer todo o passo a passo?, eram alguns dos pensamentos que lhe ocorriam a cada novo dia do fermento.

Beto nunca tinha chegado a usar seus fermentos para preparar pães, mas conseguia criá-los, óbvio. Afinal, foram três tentativas bem sucedidas, nas quais os fermentos pareciam exatamente no ponto descrito pelo livro e tinham um cheiro alcoólico forte. O último tinha sido o melhor, lembrou, era só tirar o papel filme que seu cheiro se espalhava pela casa. Foi com ele que Beto planejou finalmente preparar seu primeiro pão de levain. A panela de ferro e o banneton já tinham sido providenciados, o fogão a essa altura, já contava com dois termômetros e ele já havia feito alguns testes de pré-aquecimento. Além de tudo, tinha a farinha certa em casa (“Tem que ser uma farinha com muito glúten. Só a farinha Renata chega perto, no Brasil”, tinha aprendido com o professor e explicado para Elvira).

Mas o último fermento tinha ficado pronto um dia antes do acidente e, naquele momento, conversando com Elvira, não conseguia deixar de imaginar tudo que poderia ter sido diferente caso não tivesse ocorrido. Não que não tivesse imaginado isso incessantemente pelos últimos seis meses, só que o fermento trazia tudo isso de volta e era difícil não lembrar de todos os momentos difíceis que seguiram: a separação, a casa esvaziada, a reaproximação forçada com a mãe, a dependência da família, o ganho excessivo de peso. Antes daquela noite, tudo que importava era a hora certa de trocar trigo e água e os futuros pães puxando praquele amargor que ele amava. Agora, não ousava pensar em fazê-los sem lembrar do medo que sentiu pouco antes de um carro colidir com a sua moto. Não lembrava da ida ao hospital, só soube da “sorte” de ter sido atendido imediatamente pelo melhor ortopedista do Rio de Janeiro quando a mãe lhe contou, no dia seguinte. Porém, ainda que não tentasse mais fazer pães, continuava carregando o livro para o trabalho e, mais que isso, continuava chamando o irmão e a cunhada para visitar a Slow Bakery.

“Bom, esse vai parecer um convite inesperado para um encontro, mas, já que você tem interesse em panificação, eu poderia te levar pra conhecer uma das minhas padarias preferidas do Rio de Janeiro. Pra mim, tá entre as três melhores”

Elvira leu a mensagem e sorriu. Não é estranho! Pra me tirar de casa só se for pra ir numa padaria mesmo, brincou. Na verdade, aquela espécie de convite para um encontro era perfeito pra ela. Teriam que marcar de dia, no mais tardar um fim de tarde, se a padaria fosse longe ou em um bairro que ela não conhecia, ainda assim daria para descobrir como voltar para Niterói em segurança. O ambiente de uma padaria e o horário também demonstravam que ele não esperava ir tão rápido. Ela nem teria tido problemas com isso antes, mas, agora, só queria ir em encontros se pudesse ir e voltar sem se sentir constrangida caso não rolasse nem um selinho. Parecia que nunca mais ia conseguir se sentir tão interessada por alguém, era o que temia após algumas tentativas fracassadas de conhecer novos caras.

Tinha saído com outro cara do OkCupid há pouco tempo, antes de começar a conversar com o jogador. E ele era interessante de verdade, estava no doutorado, gostava de falar sobre a pesquisa sem subestimá-la como ouvinte, amava literatura, postava fotos de livros no Instagram e, bom, não era feio, pensava. No entanto, nada disso tinha impedido que sentisse aquele cansaço de começar tudo de novo. Por mais que a conversa fluísse bem, no caminho minúsculo entre o Cine Arte UFF e a sua casa, não pôde deixar de desejar estar sozinha em casa novamente. Na despedida, não se beijaram. Chegou em casa ponderando que podia ser coisa do dia, afinal, ainda tinha textos para terminar de ler e a ausência dum beijo talvez não significasse nada. Pra ela, ele provavelmente julgou que foi um indício ruim, não mandou mais mensagens.

A história do beijo era engraçada, pensou naquele momento. Será que seria melhor avisar Roberto, esse era o nome dele afinal, que aquilo não era o indicador decisivo de que um encontro teria ou não sido bom? Pensando no contexto “encontro em uma padaria artesanal que fecha às 19h”, Elvira estipulava que as chances de não haver uma oportunidade para um primeiro beijo seriam grandes. E não gostava da ideia de beijar na despedida.

“Beto, posso fazer uma pergunta estranha? Assim, o que você acha de encontros em que não rola nenhum beijo?”, enviou.

“Olha, acho inadmissível a pessoa sentir vontade de fazer algo e deixar de fazer por vergonha ou, sei lá, algum tipo de convenção”, Beto respondeu, mesmo sem entender direito a pergunta.

O “inadmissível” saltou aos olhos de Elvira. “Acho inadmissível”, leu com espanto, só em seguida, terminou de ler a mensagem. No fundo, acho que não tava esperando uma resposta tão cheia de convicção, refletiu.


Este trecho faz parte do livro Oi, sumido que estou publicando aqui, no Medium, e no Wattpad enquanto escrevo. Oi, sumido conta a história da série de encontros românticos e transas memoráveis entre Elvira e Beto, que foram interrompidas pelo sumiço inesperado do rapaz no WhatsApp. O fim abrupto, no entanto, é o início de uma saga, para Elvira, de descoberta de palavras, sentimentos confusos e vulnerabilidades. Sem se contentar com o sofrimento silencioso do abandono digital, a jovem decide aceitar o papel de louca que lhe sobra na história.

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