POR SEANE MELO

Inadmissível

Depois que a atendente avisou pela segunda vez que a cozinha estava fechando, decidiram pagar a conta e procurar outro lugar. Beto tentou pagar a conta, Elvira disse que dividiriam. “Beleza, então no bar eu pago”, ele negociou percebendo que não estava acostumado com aquela postura nas garotas. “Combinado”, Elvira cedeu, era quase final de […]

Depois que a atendente avisou pela segunda vez que a cozinha estava fechando, decidiram pagar a conta e procurar outro lugar. Beto tentou pagar a conta, Elvira disse que dividiriam. “Beleza, então no bar eu pago”, ele negociou percebendo que não estava acostumado com aquela postura nas garotas. “Combinado”, Elvira cedeu, era quase final de mês, afinal.

O defeito dessa padaria é fechar às 19h”, Beto comentou no caminho para o Comuna. “Mas gosto muito daqui em geral. Você também gostou?

Claro! Me lembra um café que abriu na minha rua em SP, que eu morria de vontade de entrar. Tinha a vitrine de vidro, umas cadeiras bem retas e aquela cara de desconfortável, sabe?

Desconfortável?”, Beto começou a rir. “Então foi isso que você achou?

Ai, não foi isso que eu quis dizer! Desculpa! É que tem lugar que cê olha, acha bonito, mas, sabe, não é um lugar que você entra pra comer todo dia. Não sei se dá pra entender”, Elvira tentou consertar.

Hum… Desconfortável, né?”, Beto simulou uma cara de ofendido. “Na verdade, acho que você acaba de me explicar porque eu gosto tanto daqui, mas nunca venho sozinho”.

Elvira riu. “Tá vendo?

O seu croque tava bom?

Tava, tava ótimo, cê queria ter provado? Puxa, desculpa não ter oferecido”.

Beto riu. “Não, relaxa, eu já saquei que você não gosta de dividir comida, mas tenho que admitir que é bonito te ver comendo. Você come com vontade, sabe?”.

Ai, que vergonha! Pior é que um ex já me disse que quando eu comia bolo fazia muita cara de realização”, disse rindo.

Mais tarde, na madrugada do dia seguinte, Beto pensaria a mesma coisa sobre o boquete dela.

Chegaram na rua e sentaram num bar em frente ao Comuna. Elvira explicou que já tinha ido ali para o lançamento de um zine, mas que tinha ficado realmente no Comuna. Não sabia que os outros bares da rua também recebiam aquele nome. Não recebiam, mas Beto insistiu que dava no mesmo, podiam chamar como quisessem, foda-se. Falou que morava perto dali, que costumava voltar a pé pra casa. Enquanto contava, Beto se lembrou do acidente e então falou sobre o carro que bateu na sua moto e dos seis meses em que usou pino no corpo e não pode tomar banho sozinho. Ficou gordo, mas agora tinha voltado pra academia e fazia dieta low carb. Elvira soltou no máximo um “Que barra”, mas não fez mais perguntas, tinha medo de descobrir que ele tava bêbado e tinha sido imprudente. Além disso, parecia que tinha acontecido mais do que um acidente, que ele tentava dar uma dimensão apropriada do que tinha sido e ainda não conseguia. Por que falar do ganho de peso? O padeiro, afinal, não era tão fã de glúten, esse pensamento irônico passou rapidamente pela sua cabeça.

Beto continuava perto. Tinha mudado as cadeiras de posição antes que ela sentasse. Elvira achou graça, mas também gostou, achou que estava agradando.

Todo primeiro encontro é reescrito mil vezes nas lembranças, especialmente quando se sabe do fim próximo e súbito. Das quase cinco horas que passariam no bar temático de Alice no País das Maravilhas, dividindo a calçada com mesas tão próximas a ponto de se despedirem dos três amigos sentados ao lado, só ficaram pedaços recortados de um quebra-cabeça que não se une. O assunto da foto do maiô apareceu em algum momento. Elvira riu e explicou que eram as fotos que tinha no celular, tinham sido tiradas em Mambucaba, num retiro de escrita. Contou da teoria de fotos de biquíni em lugares fechados, de como recebiam mais likes. Ele pediu pra avaliar.

Viu? Tem mais likes nessa”, mostrou.

Essas fotos não podem provar a sua teoria. A foto no ambiente fechado só tem mais likes porque é uma foto da tua bunda

Não é uma foto da minha bunda

Claro que é, só vejo tua bunda aí

Elvira ri de nervoso. “Não é, eu gosto das minhas costas e do volume na minha coxa”.

Não, é uma foto da tua bunda, quer ver? Olha só a legenda dessas duas outras fotos. Engraçadinhas e tal. Olha a legenda dessa: não diz nada!

Nada a ver. Eu juro que não pensei nisso, realmente não curto minha bunda nessa foto, o maiô me faz sentir meio avó até. Mas, sabe, é até bom saber que os caras pensam isso porque eu não tinha entendido porque um cara que nunca falava comigo tinha puxado assunto”, confessou.

Durante os próximos três encontros, esse recorte da noite não apareceria nas lembranças de nenhum dos dois. É o sumiço que faz o recorte voltar e mudar.

Beto vai ao banheiro, o rapaz da mesa ao lado chama Elvira. “Olha, desculpa me meter, mas esse cara é um babaca”, dispara. Ela sente o impacto das palavras. Machistas não passarão e já não passam mais nas mesas coladas da Rua Sorocaba, pensou e não conseguiu conter uma espécie de vergonha por estar, afinal, se divertindo com o machista em questão, gostando do encontro de verdade, pensando que numa margem de 0 a 10, aquele encontro era um oito ou nove. O dez estando fora do alcance de qualquer homem hétero. As palavras do rapaz desencadeariam uma desconfiança que até então não existia. Beto não sabe, mas suas palavras são transcritas em outra parte do cérebro e sondadas. Elvira pensa que logo iria embora e se livraria do mal estar que o comentário causou. Olha para o relógio, são 23h25, avisa que tem que voltar quando ele retorna. “Os ônibus passam aqui no Rio até que horas?”, pergunta, mas ele não sabe a resposta. Checa no celular, ainda tem ônibus passando, comenta aliviada.

Tem certeza que é seguro?”, Beto pergunta

Acho que é”, ela responde. Sem chance de dormir no Rio, sem chance, pensa. Queria voltar pra casa para tirar o pão do forno antes que Elis notasse, queria saber se tinha ficado bom. Também tinha treino às 10h. O objetivo do encontro às 16h era evitar que sequer cogitasse a opção de não voltar.

Onde você pega?

Na praia

Posso te acompanhar até lá, mas tem certeza que é seguro? Eu realmente acho tenso esse horário”, ele insiste.

O rapaz da mesa ao lado dá uma fungada de irritação. Elvira pensa que todos os comentários são apenas desculpas esfarrapadas para fazê-la ficar, mas não sabe a que distância da praia está agora e, realmente, nunca tentou voltar tão tarde pra casa. Decide ficar.

Já era preu ter voltado”, lamenta. “Queria tanto provar o meu pão”.

Beto cai na gargalhada. “Você queria correr todo esse risco por causa do seu pão?”, acha engraçado e reconfortante, ao mesmo tempo. Não estava querendo voltar por medo de mim?, é a pergunta que subentendem.

Sim, ué, tô há nove dias engajada em fazer o meu próprio fermento, claro que quero saber como ficou”.


Antes de dormirem, Beto diria com uma neutralidade assustadora que o pão provavelmente já estaria estragado. “Você precisava ter guardado no congelador”, explicaria. Elvira viraria para o outro lado da cama, sem entender como ele podia dizer aquilo, daquela forma, sobre o projeto para o qual ela mais tinha se dedicado pelos últimos nove dias. Sentiu remorso por ter abandonado o pão no forno para encontrar com um cara que nem ficou de pau duro.


No dia 18 de julho, ao olhar pro calendário e se dar conta de que haviam se passado dois meses daquele primeiro encontro, Elvira tentaria recuperar os melhores momentos, aqueles que se perdiam entre as dobras da memória como marca-página em livros abandonados. A história do beijo era uma boa história, pensou e voltaria a pensar quando outro rapaz a surpreendesse com um beijo quando ela se preparava para atravessar sua rua. Apesar do estranhamento, não ficou com raiva do rapaz. Quando finalmente chegou ao outro lado da rua, pensou que o timing do beijo ainda era umas das grandes questões dos primeiros encontros. Não gostava de ser surpreendida com beijos roubados, nem que a interrompessem enquanto falava, quando isso acontecia pensava que estavam entediados com o que dizia, por outro lado, também entendia a impaciência pela chegada do momento “certo”. Existiria realmente um momento certo? Seria ele o silêncio constrangedor?

Elvira lutava contra o silêncio constrangedor como lutava contra o patriarcado. Em seu mundo ideal, o silêncio constrangedor havia sido completamente extinto e as autoridades mantinham políticas preventivas, principalmente, no formato de cartilhas com sugestões de perguntas e alguns dados introdutórios sobre astrologia. No entanto, a falta do silêncio também parecia deixar homens e mulheres desnorteados, esperando qualquer sinalização de que o momento certo havia chegado. Com Beto, não tinha sido difícil evitar o silêncio constrangedor, na verdade, tinha sido difícil pararem de falar. Mesmo com toda a proximidade do rosto dele, que fazia Elvira notar sua boca pequena, era difícil até para ela encontrar uma brecha para um beijo. Pensava que não queria que ele parasse de falar, porque o achava interessante de verdade. Tiveram que chegar em algum ponto de discordância para que Elvira tivesse coragem de interrompê-lo.

Beto, eu realmente quero saber como você vai defender a sua opinião, mas preciso te interromper agora pois você disse que seria inadmissível se eu sentisse vontade de te beijar e não fizesse isso”.

É, seria inadmissível”, ele respondeu baixando a voz e acabando com a distância que tinha insistido em resistir até ali.


No terceiro encontro, Beto diria que a achou adorável no primeiro encontro. Adorável?, Elvira se espantaria, afinal, tinha se achado muito chata por avisá-lo que o comentário sobre o maiô tinha pegado bem mal na mesa ao lado.

Sim, você fez o nosso primeiro beijo começar com uma piada interna”.

É verdade!”

Eu achei incrível”, diria abraçando-a.

Mas você já fez muito mais esforços. Você fez um jantar e me deu a farinha e os brownies”, Elvira calcularia.

Você só me deu ótimos presentes também. Teve a tapioca e as fotos do macaco”.

Nossa, como eu tinha esquecido da minha arte?”.

Ficaram rindo, abraçados e pelados, em cima da cama de Beto enquanto ainda podiam se dar ao luxo de mais alguns minutos de atraso.


Este trecho faz parte do livro Oi, sumido que estou publicando aqui, no Medium, e no Wattpad enquanto escrevo. Oi, sumido conta a história da série de encontros românticos e transas memoráveis entre Elvira e Beto, que foram interrompidas pelo sumiço inesperado do rapaz no WhatsApp. O fim abrupto, no entanto, é o início de uma saga, para Elvira, de descoberta de palavras, sentimentos confusos e vulnerabilidades. Sem se contentar com o sofrimento silencioso do abandono digital, a jovem decide aceitar o papel de louca que lhe sobra na história.

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