Uma coletânea para a terapia

Eu só não levantei e fui embora quando te chamaram de preto e me pediram pra confirmar que teu pau era bem preto porque tu tava sorrindo tranquilo do meu lado.
Eu só não levantei e fui embora quando teu amigo disse no meu ouvido que eu já tinha trepado demais contigo e tava na hora de dar pra outros caras porque tu tava no banheiro e eu não queria ir embora sem te dar tchau.
Eu só não levantei e fui embora quando ele enfiou a mão na minha calcinha porque era a minha casa e eu não saberia mais pra onde ir. Só não disse “para com isso” mais alto porque eram sete ou oito da manhã, minha amiga ainda dormia no quarto ao lado e eu tava com vergonha de acordá-la, só não engrossei a voz ou xinguei porque não queria magoar o meu amigo. Só aceitei deixar ele ver, pelo menos, os meus peitos, porque a culpa devia ser minha.
Eu só não levantei e fui embora quando tu disse que fui burra e devia ter imaginado que era isso que ele queria quando me disse que ia pegar um táxi, um T-Á-X-I, pra ir na minha casa deixar uns livros, porque fingi que esse era o teu jeito de dizer que tinha ficado preocupado e que não sabia lidar tanto quanto eu.
Eu só não levantei e fui embora quando tu disse que as camisinhas tinham acabado e a gente não ia poder transar, porque eu já tava sem a minha roupa e não conseguia processar tua cara de pau. Tinham três farmácias na rua. Só não me vesti e bati a porta na mesma hora, porque tu tinha me feito subir a rua inteira esbaforida pra uma rapidinha. Eu ainda tava recuperando o fôlego.
Eu só não levantei e fui embora quando ele disse que precisava muito transar naquela noite, nem que precisasse estuprar alguém, e todos os homens da mesa riram, porque eram meus amigos de adolescência e, coitados, eles simplesmente não entendiam.
Eu só não levantei e fui embora quando tu finalmente confessou que tinha me traído, mais de uma vez, por umas duas semanas mais ou menos, naquela cama, sem camisinha, com a garota que tu disse que eu era louca por ter ciúmes, porque eu tinha prometido que não ia te largar se tu me contasse a verdade. Não queria te desapontar.
Eu só não levantei e fui embora quando tu disse que tinha nojo de mim, que eu era muito fácil, que tinha te decepcionado, que tu nem conseguia mais olhar pra minha cara sabendo qu’eu tinha transado com outro cara, porque já tinha acabado e eu precisava continuar no computador trabalhando.
Eu só não levantei e fui embora quando tu começou a ficar com uma garota na minha frente, depois de ter me beijado, porque eu era a tua carona e tu tava bêbado.
Eu só não levantei e fui embora quando tu me chamou de potranca no meio da transa, porque ainda queria gozar. Só não disse nada quanto tu emendou um “te amo” porque fiquei confusa de verdade.
Eu só não levantei e fui embora quando ela me perguntou o porquê, porque finalmente me ocorreu que eu não queria ter simplesmente ido embora. Queria ter tido coragem pra falar.
Para ouvir o podcast que gravamos com Seane Melo, clique aqui!
Essa crônica foi publicada na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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