
Eu não tava num dia bom. Cheguei no trampo ranzinza e saí quase superando todos os meus recordes de mau humor. Tava tudo uma bosta, sem nenhum motivo. É aquela coisa que começa com a descoberta de que o desodorante acabou e vai crescendo de acordo com a quantidade de vezes em que te dão um trabalho ridículo e em que o café da firma acaba antes de você chegar na copa.
Tava organizando os papéis na mesa pra vazar quando o Jefferson me mandou uma mensagem. Só de ver o nome dele na notificação, já senti uma melhora instantânea. Mas bom mesmo foi ler o que tinha escrito: ele queria me encontrar.
“Ai, meu deus, Jefferson! Tô relendo essa mensagem pela milésima vez porque ainda não sei se dá pra acreditar, rs”
“É sério, pô! Preciso comer alguma coisa antes de ir pra pós. Bora?”
“Claro!”, digitei e acrescentei três emojis com corações nos olhos. “Topa uma tapioca?”
A empolgação foi tão grande que nem pensei duas vezes. Só no caminho pro carro me dei conta de que era a primeira vez que ia encontrá-lo desde que a gente tinha começado a se falar no WhatsApp. Agora é sério! Eu me via naquele momento decisivo em que ia encontrar alguém com quem já tinha intimidade, correndo o risco de perceber que não tinha intimidade nenhuma no fim das contas. É bizarro como a presença física da pessoa pode inibir a gente. Sei lá como eu ia reagir diante da materialidade do Jefferson, né? Ainda mais levando em consideração a quantidade de vezes em que tinha chamado ele pra foder. Será que também ia querer me atirar em cima dele na vida real? Pior: será que ia querer me atirar nele sem estar depilada, com essa calcinha desbotada e essa cara oleosa de um dia inteiro de trampo? Quase entrei em desespero e mandei uma mensagem com uma desculpa qualquer. Puta merda, não era assim que tinha imaginado nosso primeiro encontro! Até que lembrei que ele tinha dito que ia pra pós. Isso já eliminava a maior parte dos problemas. Ficava só a cara oleosa.
Cheguei primeiro e aproveitei pra tentar tomar alguma providência no banheiro da lanchonete. Quando saí, o espaço estava do mesmo jeito, com as mesmas duas mesas ocupadas. Escolhi uma mesa um pouco afastada para que pudéssemos conversar, mas não tão perto do banheiro, porque não me imaginava curtindo uma paquerinha e fungando o cheiro de água sanitária barata que vinha de lá. Demorou uns dez minutos de olhadas ansiosas pro celular e tentativas frustradas de terminar uma página do livro que lia até que o vi se aproximando de camisa de botão e calça jeans. Lembrei de um tweet do Neymar, de longe eu já sabia, o perfume tava exalando. O Jefferson é bem gato, gostoso pra caramba. Já falei do ombro dele, né? Apesar da camisa social cobrindo tudo, ainda conseguia acompanhar todo o desenho dos braços e do peitoral. Nunca gamei tanto num ombro, juro. Eu podia ter ficado animada com aquela visão, mas, na real, fiquei meio nervosa por ele estar arrumado. Comecei a sorrir de orelha a orelha. É foda. Não paro de rir quando tô nervosa.
Ele sorriu de volta e parou na minha frente.
Continuei sentada olhando sorridente em sua direção, porque não sabia mais o que fazer. Tava me sentindo um manequim de loja que algum engraçadinho montou com a ordem dos membros invertida. Tão torta e fora do eixo que achava que não conseguia me mexer.
“Não vai nem levantar pra me dar dois beijinhos?”, Jefferson soltou com um olhar faiscante.
Ao ouvir isso, até recuperei minha consciência. Putz, ele vai usar essa desculpa ridícula pra me beijar. Metade de mim achava uma puta falta de criatividade, outra metade, dava graças a deus pela possibilidade de evitar todo o lenga lenga que precede o primeiro beijo. Levantei da mesa sem hesitação e já fui em direção a ele achando graça. Para minha surpresa, não, para minha decepção, quer dizer, não sei… enfim, Jefferson foi lá e deu dois beijinhos certeiros nas minhas bochechas. Bem no meio das bochechas mesmo, para não sobrar a menor insinuação de que era uma tentativa de beijar minha boca. E saiu dos dois beijinhos muito satisfeito consigo mesmo. Pelo visto, ele curtia mesmo me tirar do sério.
“Olha, ainda bem que você não tentou me beijar com essa tática. Teria sido decepcionante”, tentei sair por cima.
Ele riu e se aproximou de mim. “Eu nunca faria isso”, disse e, aí sim, me beijou.
Às vezes, eu me sinto muito boba. Quando alguém me beija pela primeira vez e o beijo é bom, sempre me sinto assim. Fico completamente absorta, por alguns segundos não passa nada pela minha cabeça. Acho que sou meio supersticiosa até. Mesmo que saiba que o encaixe de um beijo não diz nada sobre o dos corpos (aliás, já trepei muito bem com caras que o beijo me dava vontade de desistir), um primeiro beijo bom deixa a gente mais confiante de que todo o resto promete.
“Graças a deus que você beija bem, cara. Já pensou ter passado quase um mês chalerando um boy que beija mal?”
“Nossa, tu me faz parecer uma pessoa horrível”, ele disse me censurando enquanto se sentava. “Pô, parece que eu sou o cara mais fresco do mundo, que não aproveita que tem uma gostosa dando mole…”
“Uhhh, gostosa”, tentei parecer irônica pra esconder que tinha ficado sem graça. Não sei receber elogio. Uma dia ainda me lembro de procurar um tutorial pra isso no YouTube.
Ele percebeu meu constrangimento e aproveitou pra me dar um beijo demorado. Foi difícil retomar o raciocínio, mas, depois de alguns segundos rindo feito uma retarda, lembrei do que eu tava morta de curiosidade pra saber.
“Bom, acho que, hum, agora que a gente já se encontrou, se beijou e tudo… — comecei mas quase parei quando vi que ele já esboçava um sorriso — ah, o que é? Cê sabe onde eu quero chegar. Vamo desenrolar isso, Jefferson. O que tá faltando?”
“Vanessa…”, começou dizendo meu nome, vi logo que a coisa era séria. “Não sei direito como te falar isso sem parecer fresco ou louco”.
Me ajeitei na cadeira e esperei ele continuar. Enquanto aguardava, comecei a ficar com medo de verdade. Me dei conta do quanto tava na dele e de como seria fácil sair de lá com o coração partido.
“É que nunca conversei com uma mina que nem tu…”
“Que nem eu como?”
“Hum… que escreve esses contos, sabe? Que fala abertamente das coisas…”
“Mas que diferença faz?”
“Faz muita, sério — Não tô falando que me sinto intimidado, não é isso. Tudo bem que às vezes fico encanado pensando se tu, sei lá, contaria nossa transa num conto. Não sei se me sentiria confortável de virar personagem, entende?”
“Mano, eu não descrevo a minha…”
“Não, calma”, me interrompeu. “Ainda nem cheguei onde eu queria. Comecei só falando do que me deixa desconfortável. Não vou te mentir dizendo que não penso isso, entende? Mas, na verdade, eu vejo um lado beeem positivo nisso dos contos. Quando leio, fico te imaginando, não consigo não te imaginar naquelas situações e, cara, é uma experiência muito louca. O que tô querendo dizer é que… é óbvio que quero te comer… mas, sei lá, é gostoso ficar te atiçando e ficar imaginando, saca? Não sei se queria partir logo pra ação e perder a chance de uns dirty talk contigo. Pô, falar sacanagem contigo deve ser muito bom!”
“Não é, Jefferson. Não é nada demais, no duro. Não tenho a menor criatividade pra isso”, tentei pronunciar as frases de forma dramática pra ver se ele desistia da ideia ridícula.
“Duvido”, ele ria.
“É, sério, Jefferson”, eu disse ficando nervosa de verdade. “Não sei imaginar as pessoas da vida real assim, sem ter tido um contato físico mesmo, sabe? Eu não sei o que vou gostar de fazer contigo, cada um é diferente…”
“Mas tu pode me falar das coisas que tu gosta”.
“Não é assim que funciona comigo, Jefferson. É sério, sou um desastre nisso”.
“Cara, mas vamos tentar, sei lá…”
Quando chegamos ao local onde eu tinha estacionado o carro, se despediu de mim com outro beijo demorado, me puxando pra mais perto do seu corpo.
“Poxa…”, choraminguei quando nos separamos.
Segurou meu cabelo com as duas mãos, me forçando a encará-lo.
“Pára de reclamar, Vanessa, vai ser gostoso. A gente vai ficar se instigando…”
“Pô, mas já começa por aí, olha que palavra ridícula, instigar, tem verbo melhor, Jefferson, tem verbo melhor…”
Ele riu e me deu um último selinho antes de se afastar.
Às 23h, mandou uma mensagem perguntando se eu ainda tava acordada. Ainda, tentando adiantar uma leitura.
“Tu gosta de apanhar?”
Encaro as letras no teclado sem saber por onde começar.
Sim, escrevo.
Apago.
Mais ou menos.
Apago.
Depende.
Apago.
Depende de quê? Me pergunto e fecho os olhos tentando pensar numa resposta simples e verdadeira. Não penso em nada, na cabeça só me vem uma mão desenhada em vermelho na pele. Na minha bunda. E os dentes, as marcas, no tornozelo.
“É complicado…”
Ele me disse que gostava de sexo intenso. Eu ri. Intenso, tipo, com tapinhas? Tirei onda.
“Não, nada a ver com isso”, Ele respondeu sério.
Percebi que tinha ficado zangado. Ainda naquele dia, tinha ensaiado um tapa na minha bunda no meio da transa. Pareceu brincadeira, na real, de tão fraquinho. Tive até que segurar o riso. Nunca nenhum cara tinha feito aquilo. Aquilo de dar tapa durante a transa. Parecia cena surreal de pornô malfeito e, aquele primeiro tapa, só confirmou isso. Fui ligando a imagem da cama antiga, do espelho de moldura barata e do cara que queria bancar o ator pornô pra se sentir bom de cama e quase caí na gargalhada no meio da transa mesmo. Vai entender.
“Intenso como?”, perguntei.
“Hm.. acho que rápido. E meio bruto, não sei explicar.”, Ele desviou do assunto.
Ficamos deitados em silêncio. Quando Ele não tava a fim de papo, não tinha o que fazer. Já pensava em me levantar pra tomar banho quando se chegou mais uma vez pra mim, o pau já ficando duro de novo. Round two.
Só me lembro que tava de quatro quando Ele me pediu pra conduzir.
“Continua sozinha, cansei.”
Um gentleman. Mantive o ritmo por um tempo, pareceram 15 ou 20 minutos, mas não excluo a possibilidade de terem sido só dois, até começar a perder o fôlego. Ele me disse pra não parar. Recuperei o ritmo por mais um tempo para, em seguida, voltar a reduzir. Não, não, não é pra parar. Continuei. E então aconteceu. A mão, o som da palmada e o gemido. A mão, eu nunca vi, também não vi o vermelho. Lembro que olhava pro lençol suado embaixo de mim quando senti. A partir daí, na cabeça, a única imagem que se formava era a da mão e da pele vermelha.
Na verdade, até hoje não sei se senti ou ouvi primeiro. Aquele barulho agudo de mão espalmando carne macia. O barulho e a surpresa, que saiu na forma de gemido.
Também não sei exatamente qual era a sensação. Ou pior, se senti, se doeu, se ardeu. Não teve nada a ver com isso. Foi tipo um puxão, sabe, um solavanco. Como se Ele tivesse interrompido meu movimento e me puxado de volta. Nem sabia que ia longe, mas a palmada, a palma dele, o pá agudo, o vermelho que iria ficar, me trouxeram de volta abruptamente. De volta de onde? Não sei, mas, por alguns segundos, fui só carne, só contato, ali, eu existia e pulsava naquele pequeno ponto onde o vermelho começava a se desenhar na minha bunda.
Não sei se dá pra entender, parece que tô filosofando, mas, se fosse filosofar mesmo, poderia simplesmente dizer o que constatei naquele momento: Meu rabo lateja, logo, existo.
A velocidade aumentou sem que eu me desse conta. Não sei se era Ele, se era eu. Ele parecia mais duro, eu, mais lubrificada. Veio de novo. E mais uma vez.
Lembro do dia seguinte, no banho. De passar o sabonete pelas pernas e sentir uma dor próxima ao tornozelo direito. Analisei o local e achei um hematoma na forma de uma mordida. Não lembrava que Ele tinha mordido aqui. Só lembrava da barriga…, pensei ao mesmo tempo em que achava o hematoma próximo a uma das costelas. E da parte interna das coxas…, mais um pra coleção. E… fui levando a mão ensaboada à bunda.
Me peguei sorrindo sozinha pro chuveiro. Ainda via Ele, suado, me lançando um olhar de acusação e cumplicidade.
“Você gosta!”
Ensaboo com cuidado o meu corpo. Eu gosto, gosto quando deixa marca.
“Um dia vou reunir todos os contos eróticos em uma publicação do medium para facilitar a vida dos leitores”, disse a autora deste conto antes de constatar que estava com muitos trabalhos atrasados.
Mas, antes que organização se realize, talvez você esteja interessado em saber: 1) Esses contos fazem parte de uma só história? Sim. A personagem principal apareceu pela primeira vez no texto Talvez eu não seja voyeur. A ideia, com ela, era desenvolver uma narrativa atual (por isso muito coloquial), que se passasse em São Luís (Chega de Rio e São Paulo!) e que tentasse apresentar uma mulher distante do imaginário da femme fatale. 2) É uma história autobiográfica?Não.
De toda forma, se você gostou desse texto, minha mãe me prometeu um bolo de nata para cada 25 recommends que eu ganho por aqui. Minha dieta está em suas mãos!