Acordaram cedo. Elvira pensava no pão e no crossfit. O dia ainda poderia ser salvo se chegasse cedo em casa, refazia os planos na cabeça. Beto pensava na brochada e no sexo da noite passada, quer dizer, não sabia se pra ela tinha contado como sexo, mas, apesar de querer ficar sozinho para refletir melhor sobre os acontecimentos, achava que tinha sido tudo leve, confortável até, aliás, familiar. Sentiu Elvira se remexer um pouco mais na cama e decidiu abraçá-la, iniciou a aproximação aos poucos, com beijinhos nas costas. Elvira disse que ainda estava dormindo, ele riu, achou que já tinha acordado, estava se mexendo, ué. Era normal, costumava se mexer dormindo, ela avisou brincando. Levantaram. Ele disse que tinha que ir trabalhar, ela disse que tinha que salvar o pão. Beto riu novamente, você tá realmente preocupada, né? Sim, estava. E, de toda forma, gostava de ir embora cedo e não esperar que a convivência chegasse num nível insuportável para nenhum dos dois.
Beto ofereceu café. Guilherme tinha comprado um estoque gigantesco de cápsulas de Nespresso. Tudo que ele comprava era em uma quantidade exagerada, explicou. Bom, nesse caso não é ruim, né?, Elvira comentou. Não, nesse caso não, Beto respondeu enquanto colocava a primeira cápsula na máquina e se perdia pensando em todos os comportamentos exagerados de Guilherme. Tinha o porta-retratos da sala, que ele insistia em dizer que era fofo, comentou da cozinha. Elvira colocou a camiseta que havia utilizado para dormir na noite anterior em cima da cama e, já vestida para sair, caminhou até a sala para checar o tal porta-retratos. Não era nada demais, sentenciou, não era brega como ele tinha feito parecer, mas Guilherme tinha sido sacana, só ele estava bem na foto, Beto parecia meio estranho.
“Era a única foto que a gente tinha junto, foi no dia de uma visita do meu irmão, quando a Bernardete ainda tava viva”, justificou, se juntando a Elvira na sala com duas xícaras de café. Bernardete era a cachorrinha do irmão do meio dele, que tinha morrido há pouco tempo. O cachorro mais fofo do mundo, sempre com a língua de fora, ressaltou.
Elvira riu da cachorrinha na imagem, mas ficou pensando em como Beto realmente não saía bem em fotos.
“Acho que cê não é muito fotogênico, né?”, pensou em voz alta.
“É, acho que não. Quer outro café? A gente pode gastar mais cápsulas!”, ofereceu animado. Elvira riu e concordou.
Beto disse que iria com ela até o ponto de ônibus. Ela agradeceu, disse que não precisava, caso estivesse com pressa, mas que seria legal se pudesse fazer isso pois não sabia onde estava. E parece que vai chover, ele comentou e pegou um guarda-chuva antes de fechar a porta.
Percorreram um caminho úmido e incerto, conversando e rindo. Elvira andava um pouco na frente guiando o casal por um caminho que não conhecia até Beto perguntar porque estavam indo para Humaitá. Achei que você tava guiando, Beto!, ela deu de ombros. Refizeram os passos pelas calçadas molhadas, embaixo do guarda-chuva que protegia muito mais a farinha de trigo italiana que qualquer um dos dois.
Despediram-se desajeitadamente quando o 750D chegou. Beto arriscou um selinho e um “a gente se fala”. Elvira reparou no ombro encharcado do rapaz e se flagrou um tanto sem jeito. Ele tinha se esforçado realmente por aquele encontro, pagou a conta do bar, insistiu em acompanhá-la sem se importar em se atrasar pro trabalho, ofereceu o guarda-chuva emprestado para que ela não se molhasse quando chegasse em Niterói (mas você precisa voltar pra casa!, ela objetou) e continuava parado no ponto, esperando o ônibus partir, com uma cara que ela não sabia descrever, parecia felicidade ou, sei lá, alguma esperança…
Sentiu o peso do quilo de farinha quando colocou a bolsa no colo e não pôde deixar de pensar em como parecia ser um cara bacana. Mas todo aquele esforço — não conseguia evitar esse pensamento — cheirava a armadilha. Talvez tivesse herdado alguma característica do sobrenome Casanova, riu. Ou então era uma forma de compensação pelo desempenho sexual, lhe ocorreu. Sairia com ele de novo se rolasse um convite, claro, só que ele precisaria ficar de pau duro em algum momento. Apesar disso, o sexo tinha sido bom, concluiu antes de perceber que era a primeira vez que chamava de sexo uma relação sem penetração. É possível que eu esteja me tornando menos fálica, comemorou mentalmente antes de abrir a bolsa em busca de um fone de ouvido. Olhou pela janela e ficou tentando encontrar uma posição confortável para o corpo no banco duro do ônibus. Tomara que não esteja chovendo em Niterói.
Este trecho faz parte do livro Oi, sumido que estou publicando aqui, no Medium, e no Wattpad enquanto escrevo. Oi, sumido conta a história da série de encontros românticos e transas memoráveis entre Elvira e Beto, que foram interrompidas pelo sumiço inesperado do rapaz no WhatsApp. O fim abrupto, no entanto, é o início de uma saga, para Elvira, de descoberta de palavras, sentimentos confusos e vulnerabilidades. Sem se contentar com o sofrimento silencioso do abandono digital, a jovem decide aceitar o papel de louca que lhe sobra na história.