POR SEANE MELO

A carioca do Largo do Arouche

Ilustração: Savron Ela existe. Existiu na minha vida por algumas horas, aliás. É gente de carne, osso, pele bronzeada e cachos, mas de alguma forma consegui lhe tirar tudo que era corpo. Hoje ela é só uma história que conto e reconto pra mim mesma como um mantra que me impede de perder a cabeça […]

Ilustração: Savron

Ela existe. Existiu na minha vida por algumas horas, aliás. É gente de carne, osso, pele bronzeada e cachos, mas de alguma forma consegui lhe tirar tudo que era corpo. Hoje ela é só uma história que conto e reconto pra mim mesma como um mantra que me impede de perder a cabeça nos ônibus noturnos do Rio pra Niterói. E é tão difícil falar dela, apesar dessa repetição. Porque é quase impossível lembrar daquela noite sem me sentir injusta com a figura que ela formava.

Estávamos em um show, eu e Mariana, e esperávamos pelo grande momento da noite, quando Sidney Magal cantaria Sandra Rosa Madalena. Não combinamos isso, mas nosso silêncio até aquele momento do show e as risadas que trocávamos ao reparar no público mais velho que nos rodeava deixavam isso bem claro. Só sabíamos uma música e ainda assim, naquela madrugada de maio de 2013, escolhemos assistir a esse show, no Largo do Arouche, em São Paulo.

Vínhamos da Praça da República, onde cantamos todas as músicas do Raça Negra que conseguimos lembrar, até começarmos a ficar confusas. Essa já tocou?, Mariana me cutucou num verso de “É Tarde Demais”. Acho que sim, não sei, tudo tá parecendo meio igual, comentei. Um casal ao nosso lado riu e confirmou: estavam repetindo pra acabar o show. De certa forma, estávamos meio deslocadas ali, em meio aos casais e fãs verdadeiros. Para nós, era só um exercício de memória, lembrar das letras que tocavam nos churrascos, nas festas infantis e nos programas de auditório dominicais da TV.

Do Sidney Magal não conhecíamos quase nada, percebemos na segunda música, então, nos distraíamos olhando ao redor. Ela dançava ao nosso lado, mas só percebemos quando parte do público começou a se deslocar e conseguimos mais espaço. As brechas que eu e Mariana não utilizávamos pra dançar, ela tomou pra si. Usava um vestido florido de alcinhas e um sapatinho de couro, desses que só se compra em feiras de artesanato. Tinha o cabelo curto repleto de cachos que balançavam junto com a saia do vestido. Devia ter 30 anos — eu e Mari com nossos 20 e poucos — tinha a pele bronzeada, sorria, dançava, os cachos balançando e, nossa, como era linda. Não sei o que Mariana fazia nesse momento, pois me sentia completamente enfeitiçada. E, mesmo tendo consciência do feitiço que realizava, ela continuava dançando, o movimento parecia ser seu estado natural. Mas não dançava para nós, dançava para um rapaz alto, bem vestido, talvez até um pouco formal, que preenchia muito bem aquelas roupas. Ele, mais do que eu, estava enfeitiçado e tentava segurá-la e apertá-la contra seu corpo, enquanto ela sorria e rodava e sacudia a saia, antes de abraçá-lo e beijá-lo.

Deve ter trinta anos, eu pensava e não conseguia abafar dentro de mim a vontade de olhar mais e captar todos os detalhes. Ainda faltavam seis anos para que tivesse a sua idade, mas, naquele momento, não pude deixar de desejar envelhecer como ela. Vendo-a dançar e dominar aquele homem bonito e devotado — como ela merecia, sem nenhuma dúvida — o sentimento que me tomava era uma mistura de admiração, inveja e a vontade arrebatadora de um dia ser aquela mulher carioca. Só pode ser carioca, algo me dizia.

Quando Magal cantou os primeiros versos de Sandra Rosa Madalena, a multidão se agregou novamente. Depois que paramos de cantar e dançar, percebemos que tínhamos mudado de lugar. De toda forma, queríamos partir e procurar algo, talvez um show de Drag Queens, nas redondezas. Refizemos o caminho até a Praça da República e decidimos pegar a Av. São Luís, ainda fazíamos o caminho até lá, quando vimos o rapaz que há pouco dançava com ela no show. Estava com a cara fechada, mas quando nos avistou lançou um olhar de interesse que evitamos, fingindo olhar para o outro lado. Demos alguns passos em silêncio, como se um véu de tristeza tivesse caído sobre nós. Aquele não era o moço que tava do nosso lado?, Mariana quebrou o silêncio. Era, confirmei, sentindo uma dor inesperada. Como ele pode ir embora sem ela?, não sei se perguntei, se Mari perguntou ou se foi a noite suada, embriagada e cheirando a fumaça de cigarro que ecoou essas palavras.

Hoje, quando penso naquela noite, penso que o que me entristeceu não foi a pergunta. Foi ter enxergado naquela mulher um sonho que eu e Mari compartilhávamos. O sonho da mulher que queríamos ser e que seríamos a julgar pelos passos que queríamos dar. Era tão bom imaginar aquela mulher sendo amada, desejada e admirada! Tão fascinante imaginar que era leve e livre — como a saia do vestido e as alcinhas que escorregavam um pouco pelo ombro sem que parecesse notar — e, ainda assim, compreendida.

Desde aquela noite, repito essa história como um mantra. A cada vez que conto, percebo que nada na imagem da minha carioca se desbota, nada nela se perde. Continua linda, sorrindo e rodando, a caminho de casa, linda, leve, sozinha, cantando, sendo só ela, voltando pra casa.


Para ouvir o podcast que gravamos com Seane Melo, clique aqui!


Este conto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram | Twitter

Leia outros contos

Preencha o formulário abaixo e baixe gratuitamente "Como viver sozinha" e "O fim daquele medo bobo"