POR SEANE MELO

Tudo que posso escrever sobre a gente é uma fanfic

Eu chego na tua casa, tu abre a porta, daí o tempo congela, parece que passam muito minutos, mas na verdade foram só segundos da gente se olhando, até alguém dar o primeiro passo.

Eu chego na tua casa, tu abre a porta, daí o tempo congela, parece que passam muito minutos, mas na verdade foram só segundos da gente se olhando, até alguém dar o primeiro passo.

Ilustração: Lábios Livres

Sempre fui muito ligada às minhas memórias. Elas me acompanhavam nos meus momentos de silêncio e quietude sempre que podiam. Eram tão presentes, que, às vezes, eu tinha até medo de só conseguir amar e sentir prazer no passado. O mais engraçado é que nunca achei que isso fosse acabar. Não porque fossem muitas lembranças, mas porque elas eram como um código aberto que minha cabeça conseguia manipular, recortar, colocar em câmera lenta e filtrar. Eram as mesmas, mas poderiam ser diferentes.

No entanto, faz um ano que é difícil recuperar qualquer coisa que pareça excitante. Quando fecho os olhos à noite, antes de apertar o botão que vai fazer o sugador começar a vibrar, tudo o que me vem à cabeça é um batom vermelho escuro de toque aveludado. Talvez eu só precise aceitar isso. Que tudo o que penso agora, todas as histórias que eu poderia manusear na cabeça até gozar, deixaram de ser lembranças, se tornaram fanfics.

– Lembra que eu disse que ia escrever uma fanfic sobre a gente? — pergunto enquanto ela se concentra em ler o cardápio digital, tentando escolher a pizza do nosso jantar.

– Hum — ela morde o lábio ainda olhando para o celular, mas me dando sinal para continuar.

– Acho que já sei como vai ser. Quer dizer, já sei como quero que seja.

Ela dá os últimos toques no celular antes de voltar a atenção para mim, com um sorriso. Dobra um joelho e traz toda a perna para repousar no sofá, enquanto apoia o cotovelo no encosto e a cabeça na sua mão.

– Quer me contar? — Ela tenta me incentivar a continuar com um sorriso largo no rosto.

Por um segundo, fico pensando nas perguntas estranhas que ela me faz. É claro que quero contar, já que comecei. Mas talvez eu não devesse querer. Ainda assim, esse foi o primeiro assunto que me ocorreu quando ainda há pouco o silêncio caiu entre nós e essa ausência de conversa que flerta com um constrangimento é tudo que nós gostaríamos de evitar hoje. Então confirmo com a cabeça antes de retomar.

– Bom, na nossa fanfic eu seria um dançarino amador, desses que posta vídeos no Reels e no TikTok, e tu seria um cantor de sucesso, que eu conheci em festivais de música passados e que com quem converso eventualmente, mas sem estabelecer um vínculo tão significativo, sabe?

– A gente tem nome na fic? — ela me provoca.

– Claro

– Quais?

– Tu sabe — digo depois de revirar os olhos, enquanto ela sacode os braços para mostrar que está animada.

– E o que acontece na história?

– Tudo começaria com uma mensagem tua — paro um segundo para observar ela cerrando os olhos, desconfiada — Tu mandaria uma DM no Instagram elogiando um vídeo que eu tinha postado dançando e eu me sentiria muito lisonjeado.

– Ah é?

– Claro, porque tu é um cantor de sucesso que eu admiro. Então eu ficaria pensando: uau, ele me acompanha, ele vê as minhas postagens e ele gosta do que eu faço!

– Talvez eu só estivesse reconhecendo o teu talento — ela comenta e começa a morder o lábio inferior meio pensativa, meio envergonhada.

Lanço um olhar de censura para que ela pare de interromper a narrativa.

– Enfim… Daí a gente começa a conversar com mais frequência e eu fico muito feliz de a gente estar conversando, porque eu realmente te admiro. Só que a gente tem um amigo em comum, que também é dançarino e um idol famoso… — “O Jimin?”, ela pergunta baixinho quase para si mesma, enquanto eu continuo — …e um dia eu comento com ele que tu me mandou mensagem sobre meu último vídeo e ele faz um comentário malicioso, do tipo “esse santo quer reza”.

Ela começa a rir e fala baixinho “nossa, sempre tem esse amigo que acha que tudo é paquera”. Eu confirmo com a cabeça, animada com a reação dela, e com a história se desdobrando na minha imaginação.

– Quando meu amigo fala isso, eu digo que não tem nada a ver, que a gente só troca uma ou outra ideia sobre música, nada muito pessoal. E ele fala: bom, não sei, pode ser que não seja paquera, mas o Jungkook é péssimo para responder mensagem ou se comunicar pela internet. Ele mandar uma mensagem por DM já é, tipo, muita coisa. E ele ainda acrescenta: coitado, foi logo atrás de um hétero.

– Eu sou mesmo Jungkook? — Ela tenta manter um olhar ofendido, mas não consegue disfarçar que está achando engraçado.

– Óbvio.

– E você é o Hoseok?

Meu sorriso largo é a resposta.

– Enfim… quando nosso amigo fala isso das mensagens, eu fico: uau, ele não apenas me manda mensagens, mas ele sempre me responde muito rápido. E aí começo a achar que, de certa forma, tu realmente tem um interesse em mim, mas que também pode ser outro tipo de interesse. Nessa parte da história, eu vou ficar super introspectivo porque eu vou perceber que gosto da ideia de tu ter interesse em mim, por mais que eu seja hétero.

– E aí?

– E aí que eu vou começar a dar mole pra ti. Jogando umas frases de duplo sentido, com risadinhas e tal.

Ela balança a cabeça olhando para baixo e solta um “eu tô lascada” que mal consigo ouvir.

– Até que a gente entende que nossa interação realmente evoluiu pra uma paquera. E nós dois somos, bom, nós. Eu sou extrovertido e direto, tu é romântico e sonhador, então a gente começa a se falar sempre e a se perguntar o que essas conversas significam pra gente.

– Não é justo eu ser o romântico e sonhador! — ela faz bico.

– Eu não vou nem me dar ao trabalho de responder isso. — abano a mão como se quisesse tirar aquela interrupção da frente. — Ah, uma coisa que esqueci de dizer é que durante todo esse tempo das conversas, a gente não se encontra presencialmente. Porque tu é um cantor de sucesso e tá viajando, fazendo alguns shows, e ainda faltam dois meses pra tua turnê acabar.

– Ok! Faz sentido. Então a gente fica só se falando por mensagem e… — ela me olha com expectativa.

– Eu pensei que deveria ter sexo por mensagem.

– Tem que ter! — ela quase joga o corpo no sofá exasperada.

– Mas… não sei, não combina muito com a gente.

Ela levanta uma sobrancelha, incrédula.

– Não combina com a gente na fic. Sabe, porque eu sou um cara que se achava hétero até começar a ter esse interesse e tu quer que a nossa primeira vez seja especial. Mas é claro que isso vai ser uma questão.

– É? — ela começa a cutucar uma costura do sofá, enquanto me ouve.

– É que tu vai se sentir muito inseguro em relação ao meu desejo por ti. E claro que eu também vou ter meus receios, porque é uma experiência nova, mas eu vou achar tua insegurança muito absurda, mas não vou poder fazer nada a respeito até a gente se encontrar.

– A minha insegurança não é absurda, ela faz sentido! E se tu me encontra e descobre que, sei lá, não era aquilo que tinha imaginado?

– Não, eu concordo, faz todo sentido sim. Vai ser um ponto importante pra história, mas eu vou ficar pensando: nossa, como ele pode achar que eu não desejo ele? Por que além de estarmos conversando há meses, tu é lindo.

Ela se estica para pegar a taça de vinho esquecida na mesinha de centro e dá um gole na bebida. Lembro da minha taça e também imito a ação. Enquanto sinto o gosto levemente ácido desse vinho descer pela minha garganta, fico me perguntando se realmente sei como continuar essa história.

– Daí chega a hora deles se encontrarem, né? — como se lesse meus pensamentos, ela tenta me ajudar a continuar.

Confirmo com a cabeça.

– E o que acontece? — ela pergunta agoniada, tentando fingir que é apenas mais uma fanfic de BTS, que não há nada de perigoso na história ou no ponto dela em que chegamos.

– Transas — dou de ombros.

– Ah não, tu me contou tudo isso para fechar assim? Como tu pensou o sexo? — ela pergunta com o distanciamento de um ginecologista que faz perguntas íntimas em nome da ciência.

– Anal

Ela dá um tapa na minha perna em protesto.

– Acho que já sei que tipo de fic é essa — ela acrescenta depois de alguns segundos.

– Qual?

– É daquelas: vou te ensinar como é se relacionar com outro homem. Que daí o primeiro dia é receber um boquete, depois fazer um boquete, depois umas dedadas, depois uma chupada, depois penetração e por aí vai.

– Eu gosto muito dessas histórias.

– Eu também! — ela balança a cabeça como para me tranquilizar.

– Mas essa nossa não é esse tipo de fic.

– Não?

Nego com a cabeça.

– Certo. É que… essa parte é pior de contar. Mas vamos lá… — pigarreio — Chega o dia do nosso encontro. E, bom, não pensei essa parte ainda com muitos detalhes no ato sexual, mas eu sei que no começo é tipo assim. Eu chego na tua casa, tu abre a porta, daí o tempo congela, parece que passam muito minutos, mas na verdade foram só segundos da gente se olhando, até alguém dar o primeiro passo. E daí que a gente passou muito tempo esperando por esse momento, então não rola de ser tipo aos pouquinhos. Depois desse primeiro passo a gente vai se atracar num beijo de minutos e só vai parar quando ficar sem ar. E depois a gente vai ficar se amassando na parede até alguém conseguir ter força o suficiente pra raciocinar e dizer “vamo pro quarto”.

Tento entonar a última frase para que ela perceba que cheguei no ponto final da minha história.

– Ah… faz sentido — é o único comentário dela.

Tomo mais um gole de vinho, enquanto inspeciono as estantes da sala. Percebo que desde que cheguei à casa dela, ainda não consegui direcionar meu interesse para o ambiente, então aproveito o silêncio para me familiarizar com o cenário e esperar meu coração desacelerar um pouco.

Quando volto minha atenção para ela, ela me encara timidamente.

– A gente deveria ter feito isso? — pergunta com um gesto vago pra porta.

Eu rio do receio dela e seguro sua mão.

– Não, não. — um pouco mais leve, continuo — Acho que pensei que seria assim, mas na hora que tu abriu a porta, eu percebi que era só uma cena da fic mesmo.

– Por quê?

– Porque são dois homens.

– Ainda não entendi.

Começo a rir de nervoso, porque, na verdade, é algo muito simples e bobo.

– É que nenhum deles tava de batom.

Ela abre a boca para falar algo, mas para. Não sabe o que dizer. Franze as sobrancelhas e solta uma risadinha nervosa.

– O batom faz diferença? — há uma dose de preocupação na voz dela.

Não consigo conter uma risada nervosa. A verdade é que, desde o momento em que entrei no uber já sentia meu coração acelerado, sabia que as chances de chegar à casa dela e desaprender o que fazer com minhas mãos e meus pés eram altíssimas. Mas nada tinha me preparado para a visão daquele batom vermelho.

Enquanto tentava disfarçar a paralisia temporária que ela me causou tirando o sapato na porta e comentando qualquer coisa sobre o trânsito e o tempo, pensava que estava diante de um caminho sem volta. Nenhum batom vermelho seria só um batom vermelho depois dela.

Eu, que nunca fui muito fã de batons, me vi dispersa, apenas balançando a cabeça em concordância, observando os lábios dela, com aquela camada vermelha de toque aveludado perfeitamente desenhada, se movendo. Como algo tão banal tinha conseguido me desconcertar daquela maneira?

Então, quando ela pergunta do batom e se ele faz diferença, o sorriso nervoso é a única coisa que sai. Do contrário, eu correria o risco de sentir os olhos marejarem de desespero. Para mim, usar aquele batom como ela usava era o equivalente a bater em um cachorro morto. Sendo eu o cachorro da história.

Como, a julgar pela movimentação das suas sobrancelhas, ela ainda parecia não entender nada do que se passava na minha cabeça, me concentro em confirmar que o batom, sim, faz diferença.

– Quer que eu tire? — Ela responde levantando a mão para esconder a boca.

Balanço a cabeça, negando.

– Então o que a gente vai fazer a respeito desse batom? — pergunta um pouco mais confiante.

Uma bagunça. É o que penso em responder, mas não digo. Por que a verdade é que aquele batom me fez voltar atrás de toda a fanfic mental que projetei para aquele encontro. Há poucos minutos, eu não pensava que conseguiria beijá-la de outro jeito que não fosse desesperadamente, como se minha vida, ou pelo menos minha sanidade, dependesse daquilo. Mas a simples existência daquela coloração nos lábios dela tinha me feito perceber que, bom, não havia nenhuma salvação para mim desde o início.

– Eu tenho uma ideia — digo, finalmente reduzindo a distância de quase um abraço que nos separa no sofá. Paro quando meu joelho que está descansando no sofá encosta no dela, ainda com bastante espaço entre nossas bocas. Vejo a confusão no rosto dela quando paro sem fazer outro movimento, mas ela não diz nada. Acho que confia na minha ideia, mesmo sem saber o que pode ser.

Levanto a mão e pouso na bochecha dela. Seus olhos permanecem atentos, mas assim que afasto o polegar da sua pele, para posicioná-lo melhor, ela fecha os olhos e separa levemente os lábios quase sem perceber. Não faz nenhum sentido, meu plano é apenas preservar o batom. Passeio meu polegar pelos lábios dela sentindo a textura pela primeira vez. Não sei porque esse é meu primeiro impulso, mas não consigo evitar. Penso que tocar a pele dela ali é como tocar a própria cor vermelha.

Só paro de desenhar o contorno da boca dela quando ela expira pesadamente. Nossos olhos se encontram e peço desculpas silenciosas pela provocação exagerada, não faço ideia de quanto tempo se passou. Ela umedece os lábios com a língua, quase encosta no polegar que ainda está parado por ali, e me observa enquanto minha concentração se volta toda para sua boca.

Talvez eu nunca tenha entendido o sentido de adoração até esse momento, porque parte do meu corpo quer apenas acabar com a distância entre as nossas bocas, mas outra não consegue abrir mão da sensação sufocante (tão prazerosa) que antecede o contato. Quanto prazer eu conseguiria tirar apenas dessa boca intocada?

Antes que ela me repreenda novamente, encosto meus lábios nos seus. Não faço mais do que isso. E mesmo o toque é delicado, porque não quero que minha boca cometa o crime de desbotar o tom de vermelho da dela. Mas também quero adorá-la com meus lábios. Deixo minha boca encostada na dela por alguns instantes, tentando decorar a sensação. Era preciso que eu tivesse mais terminações nervosas para poder sentir cada detalhe como gostaria. Na falta disso, começo novamente a desenhar a boca dela, mas agora com selinhos. Ela ri, mas eu não paro de salpicar beijinhos de canto a canto. Então ela se afasta antes que eu consiga detê-la.

– Isso tudo é porque você não quer ficar borrada de batom? Eu tenho demaquilante no banheiro

– Eu não me importo com isso — tento voltar à minha tarefa de beijá-la.

– Então o que é?

Solto um suspiro inconsciente só pela dor de ter sido separada dela. Mesmo que eu quisesse, eu conseguiria explicar? Levo meus dois braços para a sua cintura porque é a única coisa me ocorre e desabo sobre ela, encaixando minha cabeça no seu pescoço e respirando mais uma vez.

– Eu gosto do batom — admito contra a pele dela — Não queria tirar.

Ela me abraça e eu sinto sua risada pela leve sacudida dos seus ombros.

– Não vai ter jeito — responde dando um beijo leve no meu pescoço. — Mas é um batom matte, aposto que ele resiste bastante.

Respondo voltando a beijá-la e, dessa vez, é um beijo de verdade. Ainda não o beijo de pessoas que passaram mais de dois meses esperando por um encontro, mas é o momento em que nossas línguas se encontram e em que eu me deixo afundar na sensação de estar prestes a mudar de estado, como se meu corpo fosse capaz de evaporar em contato com o calor dela.

Lembro do que ela me contou meses atrás, sobre a sensação de beijar outra mulher, sobre como ela gostava das diferenças. Eu me pergunto se ela gosta da diferença da minha língua e da minha boca. E penso que, para mim, não é possível comparar o beijo dela com o de qualquer homem que veio antes ou mulher que poderá vir. Porque beijá-la é como encostar no desejo. Um desejo fora de mim.

Quando nos separamos o batom ainda permanece quase o mesmo, para meu alívio.

– Você quer me contar como imaginou isso?

– Eu não imaginei nada — digo sem nem um segundo de hesitação.

Ela aperta os olhos incrédula.

– Não, mentira! Quando você pensa em sexo… hum, entre a gente… o que você pensa?

– Anal

Ela ri e dá um tapa no meu ombro. Fico pensando que um dia vou ter que explicar que não é brincadeira.

– Eu não tô falando da fic. Isso é sério. O que cê quer que eu faça ou o que cê acha que se sente à vontade pra fazer?

– Eu faço o que tu quiser.

Ela solta um gemido de impaciência e cobre o rosto com as mãos. Levo minha mão para os cabelos ondulados dela e começo a acariciar com cuidado.

– O que tu pensava? Quando pensava na gente… — devolvo a pergunta.

Ela levanta a cabeça para me olhar.

– Eu já disse.

– Não disse — eu escorrego uma mão para o rosto dela até enquadrar sua boca entre meus dedos, mostrando que há uma diferença grande entre uma mensagem de WhatsApp e a visão das palavras se formando nos lábios. Ela parece me entender.

– Eu só quero… muito… — ela arrasta os sons, começando a ficar corada — sentir você.

Sei o que ela quer dizer, mas não consigo dizer nada que apazigue o sofrimento no olhar dela. Desconfio que o meu reflete o mesmo sentimento. Parece dor, mas é prazer. Ou é prazer, de um jeito que também dói.

– Eu quero meus dedos dentro de você — ela fala baixinho.

– É uma boa ideia — solto risada nervosa.

Ela também leva as mãos ao meu rosto, mas antes que ela me prenda entre elas, seguro seu pulso direito e começo a beijar seus dedos um a um, enquanto ela fecha os olhos.

– Tem mais coisa que eu quero fazer — ela começa a descer a mão livre pelo meu colo e para no meu peito.

– Depois — digo para interromper o movimento dela, mas não seguro sua mão.

Ela me lança um olhar de desafio.

– Pra quem não imaginou nada, cê meio que parece estar imaginando bastante coisa agora, né?

– Pelo contrário. Eu nunca tive um pensamento, eu nem consigo pensar.

Volto a beijá-la, porque o prolongamento da conversa começa a parecer uma tortura maior do que todos os dias de ânsia vaga e sem forma. Agora que ela tem forma, um contorno concreto e palpável para além de uma foto redonda no aplicativo de mensagens, sinto meu corpo desesperado por algum alívio. É a boca pintada de batom, a primeira e última coisa que vejo antes daquela colisão com a materialidade. Eu sabia de toda a espera, dos arrepios ao ler ela dizendo que me queria de bruços, dos suspiros que os áudios sussurrados me arrancavam, sabia de tudo decorado. Mas não havia me dando conta de que, com ela, eu escalava uma montanha. Quando a encontrei, já era o precipício.

– Eu preciso gozar — digo antes sequer de recuperar o fôlego, assim que nos separamos.

– Você vai — ela me garante com um sorriso pretensioso.

– Não. Agora, eu preciso agora, antes de qualquer coisa.

Admitir aquilo parece uma das coisas mais difíceis que já fiz na vida. Me pergunto se enlouqueci, se meu cérebro tenta me sabotar de alguma forma. Sempre tendi para a impaciência, mas não em primeiros encontros e, especialmente, não com alguém que já é tão especial para mim. Ainda assim, sinto que posso morrer se não tirar de mim aquela expectativa. O pior é que não sei exatamente o que pedir ou fazer. Só sei que preciso gozar e que vai ser rápido.

Eu disse para ela, em muitos áudios, que não aguentaria dois minutos do toque dela em mim. Pelo menos essa parte, tenho certeza que imaginei certo. Sinto que estou prestes a começar a rir ou chorar de nervoso, porque eu preciso das mãos dela em mim. Não posso esperar por mais beijos, botões, zíperes, roupas caindo no chão e passos até o quarto. Mas não sei com que palavras dizer isso, não sei como tornar esse pedido razoável. Porque eu também quero tocá-la e observar se ela me responde com gemidos, quero descobrir o que minha boca é capaz de fazer e que gosto ela tem, cada parte dela que gosto tem. Mas me sinto completamente paralisada à beira do abismo, pensando que o primeiro passo é o salto, que eu preciso que ela me force ao salto, porque não sou corajosa o bastante. A queda pode ser longa, de mãos dadas com ela. Mas, antes disso, o salto.

Não sei como ela lê tudo o que se passa em mim. Torço para que meu desespero não seja tão visível, apesar de saber que meu rosto sempre entrega meu medo. Mas o importante é que ela entende. Quando levanta do sofá só para se sentar novamente atrás de mim e me abraçar, fico aliviada de não precisar mais de palavras. Ela me abraça forte e afunda o nariz no meu pescoço de um jeito que nem parece sexual, é apenas confortável. Quando a sensação me envolve, solto um suspiro e percebo que devia estar prendendo a respiração de ansiedade. Ela também nota, porque sinto o sorriso dela contra o meu pescoço. Ela levanta um pouco, pousa o queixo no meu ombro.

– Você quer isso mesmo?

Faço que sim com a cabeça, mas também me obrigo a soltar um “quero”, que sai quase sem som.

Ela beija minha a minha têmpora delicadamente.

– Eu vou cuidar bem de você. Você deixa?

Respondo virando o rosto para beijá-la, mesmo que a posição seja estranha e eu só consiga beijar uma lateral dos lábios vermelhos. Ela nem espera pelo encontro das nossas bocas, no mesmo momento, escorrega uma mão para dentro da minha calça e calcinha. Mesmo com as limitações que as roupas impõem, a mão dela avança sem obstáculos e com delicadeza. Abro a boca sem conseguir emitir um som quando o dedo do meio começa a afundar na abertura entre entre os meus grandes lábios e encontro o olhar dela. Acho que me diz para confiar, para aceitar o movimento que me empurra ao salto. Apoio minha cabeça em seu ombro, abro o botão e o zíper da minha calça, que em breve se tornarão insuportáveis, e tento abraçá-la com as mãos jogadas para trás.

Depois quero lembrar de dizer que ela tem dedos muito pequenos. Pequenos, gordinhos e incrivelmente macios. Depois eu digo. Porque enquanto ela dança com eles em mim não tenho muita chance de reunir palavras na minha cabeça. Não preciso dizer a ela o que fazer — e duvido que as reações do meu corpo possam ser um bom guia porque quantuo mais perto do ápice, mais quieta fico — mas ela vai descobrindo sozinha ou, talvez, apenas faça como gosta. Suspeito disso quando, sem nenhum aviso, ela mergulha dois dedinhos em mim e solta um suspiro baixinho. Fico estudando a expressão dela, que não parece se envergonhar com meu olhar, mas, como se quisesse explicar, diz “é que cê tá muito molhada” e volta a me masturbar.

Continuo focada no rosto dela, na expressão concentrada, a boca fechada. O batom ainda parece impecável, sei que ele desbotou pelo menos um tom desde que cheguei, não parece ter a mesma cor intensa de antes de mim, mas ainda não tem sinais de borrado. Sinto meu corpo se enrijecer cada vez mais, questão de segundos se eu não me mover e o orgasmo vai estar aqui. E eu vou me sentir livre de novo. Eu acho. Tudo que preciso é não me mexer, penso enquanto observo a boca dela. Mas quem se mexe é ela. Assim que sinto as contrações ondulando do meu ventre e inundando meu corpo em diferentes sentidos, como uma onda que quebra em si mesma e se divide, ela tira os lábios do meu campo de visão, aproxima do meu ouvido, diz baixinho, com muito mais ar do que som: boa noite, Bunny.

Assim que o orgasmo passa por mim, solto mais um gemido. Mas esse é um dos gemidos sofridos que já me acostumei a soltar desde que esse novo desejo começou a crescer. Pego o celular na cabeceira, desbloqueio e percebo que ainda está na conversa em que ela se despediu. Penso em dar play no último áudio mais uma vez. Desisto.

– Bunny é você — reclamo pro escuro — Tu que é o Jungkook dessa fic.

Espero que na próxima fanfic, ela me apareça com um plug de coelhinha.


Quando escrevi essa história, meu primeiro conto sáfico, pedi opinião de alguns amigos e achei que a Pollyane Belo matou a charada quando me respondeu: é uma masturbação! Fiquei pensando que aquela frase resumia muita coisa: o sexo esquisito, que é exclusivamente focado em uma personagem; o fato de tudo se tratar de uma história ficcional dentro de outra história ficcional (ou seria uma memória?); e o próprio sentimento platônico, que dá o tom da escrita e que também é um prazer unilateral. Enfim, eu gosto dessa história porque, para mim, dá para abrir camadas, mas, no fim das contas, é isso: uma masturbação.

Sei que não deveria explicar nada disso, mas achei que esse espaço no fim da história poderia ser uma espaço de conversa nossa!

Este conto foi originalmente publicado na minha coluna na Lábios Livres. Você pode conferir em primeira mão por lá ou me acompanhar por aqui!

Leia outros contos

Preencha o formulário abaixo e baixe gratuitamente "Como viver sozinha" e "O fim daquele medo bobo"