Desde que vim pro Sudeste, aprendi a ter vergonha da violência que me gestou
Só quando vi Adelaide, poeta nordestina, no palco, recitando mulheres mortas me ocorreu que esse meu defeito de falar de dor e tristeza talvez fosse regional. Enquanto ela falava de corpos assassinados e violentados, me perguntava por que era inédito, por que todos os anos, desde que mulheres sobem em palcos, não repetimos aqueles nomes? Desde que vim pro Sudeste, aprendi a ter vergonha da violência que me gestou. Fui melhorando a língua, os gestos, viajei menos no Natal.
Uma tia uma vez mandou mensagem, dizia que sentia saudades. Respondi que também. E ela pareceu emocionada, se é que é possível perceber uma emoção no chat do Facebook. Disse que se achava boba por achar que eu não responderia. Pensei comigo que responder era fácil, nunca foi o mesmo que encarar a nossa dor genealógica em carne viva.
É engraçado estar do lado de fora, esquecer que o que tanto gostei em Gabriel García Márquez era da ironia do destino das vidas marginais. Minha família materna, as mulheres da minha família materna são uma antologia dessas ironias. E quando vejo Adelaide falar de balas, nucas e cus ensanguentados, penso que é só convivendo com essa ironia que não se desvia mais o olhar ao falar de dor. Mas, ao contrário dela, continuo desviando, por medo de me entregar. Deixo que chamem de agressividade os gestos familiares, faço terapia, rezo por mim e mamãe.
Mas a história das mulheres da minha família não é triste, é irônica.
A mais irônica é a história da tia que brincava comigo de Chiquititas. Um dia ela disse o que queria ser quando crescer: sexóloga. Ela me ensinou essa palavra. Mas acabou que, aos 19 anos, tinha escolhido um percurso diferente, ainda que dentro da sua coerência. Fazia programas. Finalmente uma puta de verdade naquela casa em que todas as mulheres recebiam esse nome.
Puta, foi como minha avó chamou outra tia, anos depois. Quando soube que ela estava grávida de três, quatro meses. Não adiantou explicar que tinha sido estupro.
Puta, talvez tenha dito para outra tia quando ela voltou de Brasília, com um filho, abandonada ela pelo homem, abandonado ele pelo pai. Mas essa tia bancava. Bancava o filho e ajudava na casa, trabalhava de tudo, aprendia infinitamente, não sei se algum dia se importou com os xingamentos.
Mais tarde, essa tia se juntou ao MST. Agora ela é sem terra, quando ouvi a brincadeira de papai me peguei surpresa. Nunca tinha percebido que minha tia não tinha nada. Depois de ter conseguido uma terra, a ironia é que sofreu um acidente de trânsito e se tornou deficiente. Manca, tem um homem, duas novas filhas, a mais nova deficiente. Mas ela não admite, dizem, enlouqueceu.
O mais irônico é que a tia que era puta deixou de ser muito rápido. E hoje é mais lembrada por ter sido magra. Teve um filho com um. Casou com outro. Teve outro filho. Dobrou de tamanho. Sempre falaram mais do peso que de qualquer outra coisa. Até o dia em que mamãe me mandou uma notícia no zap. Página policial. Reconheci ela na foto depois de um tempo. Foi presa com o marido vendendo cocaína. Fiquei pensando se traficante teria o mesmo impacto que puta no vocabulário da vó. Depois de um tempo, foi solta para poder cuidar dos filhos enquanto esperava o julgamento. Disseram que ia ter que andar de tornozeleira, estava em falta. Mas irônico mesmo é que faz dieta e posta o processo de emagrecimento no Instagram.
A tia que foi estuprada teve uma menina. De braços peludos como ela, calada como ela, mansa. Se juntou com um homem bom, deu um pai bom pra menina. Até o dia em que ele partiu em mais uma viagem, era caminhoneiro, e nunca mais voltou. Especula-se que foi a família que o impediu de voltar, outros dizem que tinha outra mulher e outros filhos. Deixou a menina sem pai e sem explicação, deixou a tia de cama. Tem dias que ela não levanta, tem anos que só funciona com remédios. Mas depois de muitos exames, concluíram que os danos no seu cérebro eram decorrência principalmente de agressões, pancadas, cascudos. Minha família sempre dominou a arte dos cascudos dolorosos. Mamãe chorou quando chegaram os resultados.
A tia que foi adotada é mais nova que eu. Diziam que foi a única filha mimada, que era preguiçosa e burra, que vivia com o cu arreganhado. Quando cresceu, fugiu com uma mulher mais velha. Morou com ela por alguns anos durante os quais deixou de ser parte da família. Disseram que não era lésbica, não, era interesseira. Um dia voltou e, pouco tempo depois, engravidou. Dizem que o pai é bandido, que é preguiçosa, que continua com o cu arreganhado e nem do próprio filho cuida. O mais irônico é que não é amarga, o mais irônico é que trata a vó com amor.
A tia que tinha uma galeteria, quando nasci já era casada com o mesmo homem de hoje. Sustentou os dois filhos e o marido e algumas de suas amantes com o negócio. Podia ser rica, dizem. O irônico é, que não bastassem essas dificuldades, foi diagnosticada com câncer de mama. Durante um ano e alguns meses morou com minha mãe, fez quimioterapia, cirurgia, radioterapia e bordou panos de prato sem parar, como se tivesse medo de morrer e deixar um conjunto incompleto, sem todos os dias da semana. Durante um ano, a filha a visitou uma vez, o filho nunca foi. O irônico é que ficou com os dois peitos, mas da sua casa e do seu negócio doaram até a roupa de cama. Acharam que ela ia morrer, deduzimos. Deveria ter bordado colchas também.
A tia que passou num concurso público mora em Brasília. Falamos raramente sobre Harry Potter. Ficou loira e tem um gato, é o que sei sobre ela hoje. É tão distante quanto pode, é tão distante quanto eu.
Outra não teve tempo de ser minha tia, morreu criança. Morta, sempre foi tratada com carinho.
A última filha de minha vó é na verdade minha mãe. Mamãe me disse que não escrevesse nossa história. E, enquanto essas linhas foram escritas, percebi que tinha razão. Porque escrever é ordenar e ordenando crio sentidos. Alguns poucos sentidos, na verdade, falsos sentidos. Não chamariam essa história de realismo fantástico, como eu gostaria, chamariam tragédia. Chamariam até de feminismo ou vitimismo.
E, disso, de torná-las vítimas em suas próprias histórias, de deturpá-las, encaixá-las entre palavras cruéis como uma vizinha maldosa, minhas tias nunca me perdoariam. O problema é que as palavras realmente têm limites se tentam capturar forças inexplicáveis. Essas mulheres que carregam mundos, mas cuja maior e mais antiga luta é apenas uma: perdoar sua própria mãe.
Essa crônica foi originalmente publicada em 2018, na zine São nossas as notícias que daremos, do Movimento Respeita! Ela foi cedida pela autora para publicação digital na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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