POR SEANE MELO

Travessura

Ilustração por Jessies Piece “O que eu fiz? Não fiz nada” Ontem, me veio uma imagem antiga. Um homem que, de pernas abertas, sentado na cama, passava as mãos pelos meus cabelos e me chamava de safada. Guardei essa lembrança porque de alguma forma, ela foi um dos não tantos prazeres que encontrei naqueles braços. “O que […]

Ilustração por Jessies Piece

“O que eu fiz? Não fiz nada”

Ontem, me veio uma imagem antiga. Um homem que, de pernas abertas, sentado na cama, passava as mãos pelos meus cabelos e me chamava de safada. Guardei essa lembrança porque de alguma forma, ela foi um dos não tantos prazeres que encontrei naqueles braços.

“O que eu fiz? Não fiz nada”, respondi sonsa, lambendo a saliva que escorria para o meu queixo.

Ele sorria e eu me sentia satisfeita. Por quê?, me pergunto agora. Na hora, tentei decifrar as entrelinhas naquele sorriso em frente. Safada. Gostava da palavra porque sentia que sutilmente o enganava, que conseguia fazê-lo me ler como uma mulher sexy e livre, diferente de mim. Era isso que aquilo queria dizer? De alguma forma me aproximava dos recortes de atrizes pornôs que ele trazia consigo, das mulheres insaciáveis e dispostas a tudo, sorrindo com os olhos pra câmera. Às vezes, eu até mesmo imitava um ou outro gesto, tentando a difícil matemática de fazer um pau normal ocupar duas mãos, só para vê-lo sorrir mais. Ele repetia: safada — e, ainda que feliz, eu achava engraçado que ele só conseguisse entender minha sexualidade como um estereótipo bobo.

Safada? Ele não sabia, mas eu o chupava com a mesma cara que devia fazer quando apagava ou acendia as velas da sacristia aos nove anos. Ao segurar seu saco, experimentava a mesma coceirinha-excitação que ao pegar as novenas na mesinha na entrada da igreja. Munida dos papéis, ia desfilando inocentemente pela igreja, fazendo o rabo de cavalo balançar de um lado para o outro, até o cantinho das velas, na sacristia, esperando não levantar suspeitas. Estimular o corpo dele, lamber, descobrir o que funcionava, era quase como ir tacando fogo naqueles santinhos, segurando o papel até o ponto em que não conseguisse mais. O gemido dele era a pontinha final de papel desaparecendo no fogo sob o meu olhar satisfeito.

Um dia joguei uma folha A4 inteira nas velas de promessas. O Padre estava ocupado conversando com a minha mãe. O fogo no papel cresceu tão rápido que me assustou, me fazendo derrubar o papel em cima de outras quatro velas 7 dias. As chamas de todas elas se levantaram e se juntaram, pintando a parede da igreja de preto. Isaura, que me acompanhava na travessura, ficou nervosa e começou a cuspir nas chamas, imitei sem pensar. Acertamos uma ou duas vezes, até começarmos a errar o alvo. Desatei a rir de Isaura. Tu tá cuspindo nas velas dos mortos! Ela quase caiu na risada também, mas o fogo não diminuía, a preocupação vencendo a vontade de rir. Precisamos de água! Corremos até o bebedouro, enchemos a boca de água e voltamos para cuspir no fogo. Finalmente conseguimos apagar e saímos de lá antes que alguém desse com a parede mais preta e com as velas molhadas.

É estranho refazer esse caminho. Parte de mim diz que não faz sentido, são memórias que se mesclam involuntariamente. Outra parte diz que procuro uma linha de identificação para regredir e avançar em busca de respostas. De certa forma, me sinto a mesma nas duas lembranças. Danada, eu preferiria essa palavra. Entre as pernas dele, volto a brincar com fogo. E se ainda for preciso, cuspo.


Para ouvir o podcast que gravamos com Seane Melo, clique aqui!


Este conto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

Siga também nossas outras redes sociais: Facebook | Instagram | Twitter

Leia outros contos

Preencha o formulário abaixo e baixe gratuitamente "Como viver sozinha" e "O fim daquele medo bobo"