POR SEANE MELO

Sobre os brincos que perdi em outras camas

Ilustração: Yuki Bang Descobri que o problema dos meus relacionamentos não são os homens, são os brincos. É pelos brincos perdidos que fico triste. Mas vou contar do começo. Tive a ideia genial de voltar pro Tinder há umas duas semanas. Achei que precisava conhecer gente nova e voltei praquela merda. Prometi que não ia sair […]

Ilustração: Yuki Bang

Descobri que o problema dos meus relacionamentos não são os homens, são os brincos. É pelos brincos perdidos que fico triste. Mas vou contar do começo. Tive a ideia genial de voltar pro Tinder há umas duas semanas. Achei que precisava conhecer gente nova e voltei praquela merda. Prometi que não ia sair curtindo o primeiro que achasse simpático e tivesse uma bio engraçadinha, que ia abrir o aplicativo por pelo menos uma semana, ia seguir o conselho dos meus amigos gays, ia fazer pesquisa sociológica, aplicar a tal da observação participante e tudo. Até li uns textos na internet que falavam da forma certa de se usar o Tinder. E a forma certa, se você quer saber, é completamente oposta à forma como eu usava.

Uma vez curti um cara que colocou uma foto de rosto e um monte de foto de gato. E nem parecia gatinho fofo de internet, sabe? Parecia que ele tinha achado uns gatos na rua e tirado foto. Os bichinhos tavam todos com aquele olho brilhante assustado. Achei hilário, curti, saímos, transamos, trocamos receitas veganas e esse é o meu case de sucesso.

Na real, com esse cara até usei certo. Porque o Tinder se usa assim: tem que fingir que tá numa balada. Tem que lembrar da iluminação ruim, da luz branca piscando, da música alta, dos seus amigos gritando “acho que vou pedir uma catuaba” e te puxando pelo braço e dos rostos que você mal consegue focalizar. Quando você encara alguém, são três segundos de deliberação: pega ou não pega? Me disseram que tem que ser assim, porque esse lance de ficar checando interesses em comum é uma roubada. A gente fica tentado a descartar o Pedro, 23, porque ele curte pelo menos cinco páginas sobre o Flamengo, que exagero!. A gente pega abuso do Felipe, 34, porque ele é CEO de uma startup. A gente já conclui que o Roberto, 25, é um cuzão porque ele faz questão de colocar na bio que quem quer relacionamento não é pra dar like. Esse último exemplo não foi tão bom, porque o Roberto deve ser um cuzão mesmo. Mas pensa lá no Pedro, 23, e no que você faria se encontrasse ele na balada. Talvez você sentisse aquela coisinha que a gente sente quando os nossos hormônios parecem estar dançando lambada, talvez nem reparasse que ele estava usando uma camisa do Flamengo.

Enfim, achei que tava preparada pro Tinder dessa vez e que só ia dar like pra quem fizesse meus hormônios dançarem o Melô do Jonas. E, no duro, fiz tudo certo. Só que o destino me aprontou uma cilada, que começou no exato instante em que Miguel, 32, apareceu na minha tela. Não demorei três segundos pra curtir, mas ele demorou um bocado, na real. Nesse tempo, comecei a fuçar o perfil dele e, cara, parecia brincadeira. Se eu tivesse escrito num papel tudo que sempre quis numa pessoa, não seria o Miguel, porque eu ia escrever um monte de besteira. Só que o perfil dele parecia ter sido criado pra me mostrar o que eu precisava encontrar em alguém. Só falta não rolar o match, pensei quase no mesmo instante em que rolou.

Fecho os olhos e ainda consigo sentir o primeiro encontro da mão dele com a minha cintura e aquele arrepio fino que tentei disfarçar. Fico parada tentando memorizar as mensagens escondidas na textura grossa daquela língua. Volta e meia ainda me pego sentindo o cheiro dele em mim. Daí me lembro de observá-lo pegando uma cueca limpa no armário. No que será que tá pensando? E de sentir um aperto no coração. Quer dizer, sou meio supersticiosa e, olhando em retrospecto, talvez não tenha sido um aperto, só uma inquietação. Sei que, na hora, senti um pouco de medo, vendo como estava sério e silencioso, senti medo de que acabasse ali.

Normalmente, tenho medos mais concretos em primeiros encontros, porém, naquele momento em que não sabia nada sobre as próximas horas, os próximos dias e os próximos finais de semana, me senti encolher de ansiedade. Não queria começar a contar as horas que demoraria pra responder, não queria pensar no que não foi, não queria obrigar minhas amigas a repetirem que não fiz nada de errado, não queria me sentir desinteressante. De novo.

Naquele dia, cheguei em casa já com um pé na bad. Antes de dormir, prometi pra mim mesma que ia passar, que, em uma semana, a vida seguiria como se nunca tivessem existido aqueles três segundos em que Miguel, 32, entrou na minha vida. Senti algo me espetando na orelha esquerda e percebi que ainda não havia tirado os brincos. Depois de tirar o que me espetava, me dei conta de que não estava mais com o outro lado. Encarei com tristeza o brinco sobressalente. Gostava desse par de verdade, queria ter usado mais, até ter enjoado, lamentei. Pensei em mandar uma mensagem pedindo pro Miguel avisar caso encontrasse, mas tive medo dele achar que era só uma desculpa pra puxar assunto e acabei concluindo que o problema não eram os amores frustrados, sabe? Na real, seria muito fácil esquecê-los, não fossem os brincos que ficam pra trás.

Parece que a função social dos meus brincos é refutar o “não tenho nada a perder” que insisto em me repetir antes de cada encontro. Talvez a representação perfeita pros meus relacionamentos sejam mesmo esses lados solitários que sobram, como uma coleção de pontas soltas.


Seane Melo é blá, blá e blá blá. Sem falar que as coisas que escreve são #$%&!


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