POR SEANE MELO

Antes que percebesse, eu era a louca

“Tô muito ansiosa pra te ver”, enviei antes que pudesse pensar duas vezes, mas era verdade. Estava tão ansiosa, há tantos dias, que a conversa, antes fluindo naturalmente sobre qualquer assunto, agora não passava de sinônimos para “quero te ver”. A resposta demora e, como ele é do tipo que desativa as notificações de leitura, […]

Tô muito ansiosa pra te ver”, enviei antes que pudesse pensar duas vezes, mas era verdade. Estava tão ansiosa, há tantos dias, que a conversa, antes fluindo naturalmente sobre qualquer assunto, agora não passava de sinônimos para “quero te ver”.

A resposta demora e, como ele é do tipo que desativa as notificações de leitura, não sei se leu ou não. Dou uma espiada na janela ao lado da minha cama e assisto, espantada, à mudança do tempo. Acordei achando que era um dia bonito e cheio de oportunidades promissoras, como ir à feira, correr na praia, sair pra tomar um café ou simplesmente começar uma nova leitura. Mas as nuvens se moviam numa velocidade atípica e metade do céu já exibia uma coloração acinzentada sem graça.

Acordei achando que era bonita e interessante, feliz por ter alguém que parecia devolver o meu interesse na mesma moeda mas isso tinha sido antes daquela mensagem. Talvez já tenha dito isso demais. Será que ele vai achar que estou levando tudo muito à sério? Será, será, será, será, será, vou lendo na nuvem que avança cada vez mais rápido deixando o dia estranho. É difícil não saber com o quê estou lidando. Há poucos minutos fazia sol, agora, não sei mais o que esperar e, de alguma forma, o silêncio me encara e diz que a culpa é minha.

Tenho esse poder de deixar tudo pesado, de complicar, de nublar. Sou eu. Passo pelo espelho do guarda-roupa e volto, assustada, pra constatar que acordei na minha versão de louca. Nada ali é tranquilo, tudo diz desespero. Sei o que acontece, mas ainda assim faço o teste: experimento dizer “tô muito ansiosa pra te ver porque parece que a química vai ser boa e curti demais aquela foto do seu pau”, porém, o som que sai da minha boca é diferente e soa, inconfundivelmente, com “estou completamente apaixonada por você e não quero nada menos que um relacionamento monogâmico e estável”.

Abaixo a cabeça desanimada, já estou familiarizada com aquilo. É chato e demora a passar, às vezes, permanece por meses. Dependendo do cara, a experiência é tão chocante que ele nunca mais consegue me ouvir. Quer dizer, estou pressupondo que algum deles já me escutou realmente, mas não tenho essa certeza. Na verdade, quando acontece com um cara por quem nem estou tão interessada, até acho graça e brinco. Já sei que “nossa, podia transar com você toda semana” vai soar como “estou querendo engravidar e acho que um filho nosso seria lindo” e digo de propósito para ver sua fisionomia se fechar como o dia de hoje.

Com ele, é diferente. Não quero que corra, não agora. Não quero que comece a medir cada gesto e a economizar em cada carinho. Quero saber como pode ser por inteiro antes que comecemos a escrita em entrelinhas. Digo para o espelho que não quero jogar e prometo ser sincera, mas o som que escuto é “quero namorar, posso estar dizendo que estou de boa, mas é tudo parte de um jogo para que você esteja namorando comigo antes que possa se dar conta”. Tenho vontade de chorar e me desespero pensando se ainda vou encontrar uma forma de dizer o que sinto e soar exatamente como gostaria. O espelho frio sugere que o melhor é não falar, nunca falar. Essas coisas acontecem porque você insiste em falar!, censura.

Olho decidida para o meu reflexo de louca e planejo mentalmente que não vou mais falar. Vou deixar acontecer, calada. Balanço a cabeça satisfeita com a minha decisão e percebo que minha imagem começa a voltar ao normal. Vai passar! Não vou estragar tudo dessa vez, prometo para mim mesma e decido sair da frente do espelho para passar um café.

Ele responde a minha mensagem com um áudio de dois minutos. Encho a xícara de café com leite antes de apertar o play. Beberico minha bebida enquanto ouço atentamente a mensagem hesitante. “Não quero namorar”, ele repete por dois minutos das formas mais diferentes possíveis e não consigo não me sentir cansada. Olho pra xícara cheia e acho irônico que meu único pensamento seja o de que o leite está derramado.

O sentimento que ganha é uma certa tristeza, mas, confesso, ela também divide espaço com uma porção de raiva. Decido terminar de beber o conteúdo da xícara antes de responder e então aperto o botão de gravar. Do outro lado ele ouve:

“Eu entendo que você saiu de um relacionamento há pouco tempo e não quer algo sério no momento. Mas, sabe, acho que isso aqui não é qualquer coisa. Quando nós nos encontrarmos, tenho certeza que você vai ficar apaixonado e não vai pensar em outra coisa exceto me pedir em namoro. Tá na cara que é isso que vai acontecer”

Ao fim do áudio ecoa a minha risada. Na minha cozinha, continuo rindo com sarcasmo do que disse. Olha, não vou mentir: gosto de conversar com você e cê parece ser um cara interessante, sabe? Mas daí cê achar que quero namorar quando ainda nem sei se você me come bem, acho meio forçado. Sei lá, sair com um cara como você é tranquilo, mas, na real, nunca parei pra pensar se realmente te aceitaria como parceiro sem saber se cê bebe demais, se não vai deixar a pia sempre cheia de louça, se cê ao menos lava suas cuecas, saca?


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