Sinto que já falei muito do livro Coelho Maldito no meu Instagram. Inaugurei, inclusive, um quadro de vídeos chamados “Um livro e uma receita” com ele. Então fico achando que todo mundo já sabe o quanto gostei dessa leitura, mas ainda tem muito do que pensei ou senti lendo essa coletânea de contos da escritora coreana Bora Chung que não gostaria que se perdesse.
Mais uma vez, a leitura foi motivada pelo Clube de Literatura Coreana. Caso contrário, talvez não tivesse encarado ler histórias de realismo mágico e horror. A verdade é que sou muito medrosa. Mas, para ter uma dimensão correta, pense em uma pessoa medrosa e multiplique por dez. Quando criança, tinha medo de passar perto de um livro do Stephen King que tínhamos no rack da sala: Christine. Do qual passei a ter consciência depois de assistir cenas do filme, já que nunca tive coragem de lê-lo.
Pensando bem, minhas experiências infantis com o que estremece e aterroriza ocorreram todas por meio de filmes. Na literatura conseguia ir até os romances policiais e o fantástico de Harry Potter e Senhor do Anéis. Mas nunca perto demais do horror, porque eu acreditava que se já era difícil esquecer as imagens veiculadas nos filmes, nos livros, nos quais eu seria a responsável pela criação das imagens, seria impossível.
Mesmo assim, a curiosidade pela autora coreana falou mais alto. E, agarrada à promessa de que os contos possuíam diversas críticas sociais, às quais eu poderia focar para esquecer o horror, me permiti descobrir novos caminhos do fantástico.
Tudo isso coincidiu com uma série de aulas que tive com o professor Alexander Meireles, do Fantasticursos, um projeto muito surpreendente e gigante de disseminação dos gêneros do fantástico. E que, por acaso ou não, me ajudou bastante a ler a Bora.
Sem querer entrar em minúcias das aulas – minha memória não é das melhores – algo que descobri é que diversos autores russos figuram entre as obras de referência da ficção científica, do realismo mágico e de outros gêneros do fantástico. Além disso, as obras desses autores tendem a um pessimismo, seja pela experiência das guerras mundiais na Europa ou outras circunstâncias políticas e sociais de outros períodos. Mas o que isso tem a ver com a Bora Chung?, você pode estar curioso. O fato é que Bora, além de escritora, fez mestrado e doutorado em literatura russa e do leste europeu.
Longe de querer sugerir que a obra da coreana deve alguma coisa a escritores europeus – inclusive a própria autora parece separar bem o seu trabalho acadêmico da sua escrita -, pensar um pouco nesses gêneros literários e nos modos de olhar de acordo com cada realidade me ajudou a ler os contos de Coelho Maldito de outra forma.
Ao fim de cada conto, me peguei sempre com várias questões. Eu tinha entendido o ponto central? O que aqueles desfechos sugeriam? Quais eram as críticas que Bora queria fazer? Meu primeiro movimento era sempre olhar para o componente mágico ou sobrenatural para encontrar as representações escondidas. No entanto, pensando nos russos, eu começava a deixar o fantástico de lado para investigar o real. O que há de absurdo nessas experiências da realidade? Por que as naturalizamos?
Fazendo essas perguntas, pude aproveitar Coelho Maldito de mais de uma forma, para além das narrativas envolventes. E fiquei um tanto fissurada em imaginar o tipo de humor de Bora. Em uma entrevista, ela parece dar pistas disso quando conta como, em uma das melhores e mais caras universidades da Coreia, ela só podia ter acesso ao wi-fi em dois dispositivos e que, portanto, passava os dias conectando e desconectando celular, tablet e computador.
Entre os contos de Coelho Maldito, há um, intitulado Menorreia na tradução brasileira, que conta a história de uma moça que precisa tomar anticoncepcionais para evitar menstruar sem parar e, após tomar os medicamentos por seis meses, fica grávida e precisa, então, encontrar um pai para o filho a fim de garantir que ele nasça bem. Este conto é um prato cheio para pensar na condição feminina, no corpo das mulheres, no patriarcado, na maternidade etc. Mas não pude deixar de sorrir imaginando que cena do real poderia tê-lo motivado. Na minha cena, Bora está fitando uma bola de sangue num vaso sanitário e pensando: lá se vai meu filho.