Desde o ano passado, eu acompanho o Clube de Literatura Coreana, organizado pela editora Luara França, alguém que eu tenho sorte de conhecer pessoalmente. Não digo que participo do clube, pois quase nunca consigo finalizar os livros do mês a tempo dos encontros e, ainda mais raramente, os encontros ocorrem em horários possíveis para mim. Portanto, apenas acompanho e sou mensalmente contagiada com a empolgação deles pelos livros que leremos.
Por ocasião do clube, li “Bem-vindos à livraria Hyunam-dong”, de Hwang Boreum, e, mais recentemente “A inconveniente loja de conveniência”, de Kim Hoyeon, ambos os livros exemplos do que se tem chamado de healing fiction ou healing literature. Além dos autores coreanos que o grupo me fez entrar em contato, conheci o trabalho do japonês Toshikazu Kawaguchi, em “Antes que o café esfrie”, também parte desta tendência, ainda que com menos similaridades.
Se com a leitura de “Bem-vindos à livraria de Hyunam-dong” pude apreciar o que as narrativas curtas e reconfortantes da moda tinham a oferecer – apesar de todos os problemas de revisão da edição BR – depois de “A inconveniente loja de conveniência” me senti um tanto deprimida com a cura superficial e massiva que o mercado editorial estava propondo.
Como sempre estou atrasada nas leituras do grupo, antes que sequer começasse a leitura do livro publicado pela Bertrand no Brasil, as mensagens decepcionadas não paravam de pipocar. Muitos precisaram de incentivo para continuar e a maior parte só finalizou a história para a discussão. As mensagens podem ter enviesado a minha leitura. Comecei o livro esperando o pior, mas, como às vezes sou do contra, confesso que li procurando o que defender.
Assim, esse não é um texto sobre como não há nada de bom no “Loja de conveniência”. Ao contrário do grupo, não achei o fim terrível e fora de contexto. Veja bem, não havia muito contexto para nenhum dos personagens e todos os capítulos parecem ter resoluções abruptas. Portanto, não considerei que o fim destoava de qualquer outra parte da obra, mesmo que isso não seja necessariamente bom. Mas me peguei muitas vezes pensando no que aconteceria se este tivesse sido o primeiro livro da “ficção de cura” que li.
De certa forma, o que mais gostei em “Hyunam-dong” foi as questões dos personagens, todas elas relacionados ao mundo do trabalho, com seus excessos, expectativas, injustiças e fracassos. Este aspecto, de forma menos millennial – já que não temos uma livraria fofa, uma moça que faz crochê e um barista – me parece que também é o centro do livro de Kim Hoyeon. Ainda que neste último, algumas questões pareçam se referir à família e à forma como nos relacionamos, um segundo olhar para a vida dos personagens pode revelar que seus problemas familiares estão relacionados à exaustão e/ou escolhas antiéticas realizadas no trabalho em prol da dita família.
Depois de ler avaliações entusiasmadas dos leitores de “Loja de conveniência” no Goodreads, acatei a possibilidade de que a história pudesse ter me mobilizado um pouco mais se “Hyunam-dong” não tivesse chegado em minhas mãos antes. Para ser justa, ainda acho que Boreum faz um trabalho melhor com os personagens, todos eles muito mais relacionáveis com o leitor. Mas, sem dúvida, o livro de Hoyeon poderia ter mais brilho sem esse referencial.
Mas há algo que “Loja de conveniência” me trouxe, que eu não havia sentido nas leituras anteriores: um incômodo profundo com a ideia de criar soluções. Não que imaginar um mundo melhor seja algo ruim. Usamos a literatura para imaginar o melhor e o pior, para experimentar o que está fora de nossas vivências ou para elaborar a realidade de uma forma que nos permita assumir o controle. Mas, em minha opinião, se há algo de rico e reconfortante na literatura de cura não é o final feliz. Pelo contrário, é a confissão dos problemas. E uso a palavra confissão porque, em geral, sabemos que os problemas sociais existem e que nosso modelo econômico tem muitas falhas. Mas trazer este problema para intimidade de personagens que até então tentaram viver de acordo com as crenças do capitalismo gera outro efeito: o conforto de saber que não está dando certo para ninguém e que, mesmo quando dá certo, não dá, já que a satisfação nunca é alcançada.
Além disso, em minha visão, outra riqueza desses livros é a de sinalizar como o trabalho assumiu uma centralidade em nossas vidas e é difícil saber quem somos fora dele. Assim, por mais que eu me sinta desapontada com as soluções que simulam outros caminhos dentro da mesma lógica capitalista, no fundo, não é de se espantar. Como obras de escritores – que só podem contar com o ato da escrita para definir o que são – são reflexos de uma esperança antiga: a de encontrar formas rentáveis e dignas de ser quem somos.
Procurando informações sobre o autor do livro “Loja de Conveniência”, descobri que é dele também uma obra chamada “I Write It Everyday, Rewrite It, and Write It to the End”. Na entrevista que li, ele define a obra como um livro de memórias e uma história de sobrevivência desesperada, mas bem-humorada, de como ele tem vivido só da escrita por 20 anos. Com o sucesso internacional do seu último livro, Kim Hoyeon parece ter garantido uma forma de transformar em realidade suas esperanças, ele conseguiu pelo menos um período de maior estabilidade para seus próximos anos.